quarta-feira, 16 de abril de 2014

Biblioteca inesperada : 'Betty's Reading Room' em Tingwall


[mais uma reportagem virtual de sítios improváveis]

Tingwall fica nas ilhas Orkney, muito lá para cima, 'depois' da Escócia - talvez lá por onde andou o grego Pytheas à procura da Ultima Thule, mas onde nunca chegaram os romanos. Uma terra de planuras no meio do mar, cobertas de verdura rasteira - as árvores já rareiam - onde são precisas muitas horas de ferry e estrada para chegar a algum foco cultural, mesmo assim periférico.
Tingwall, na Mainland Orkney

Vive-se da pesca e da lã das ovelhas (lindíssimas camisolas). As noites são longas, o Inverno nunca mais acaba. Quando vem o sol, inunda tudo com uma luz de milagre, esplendorosa, azuis e verdes resplandecem por uns instantes, e acaba.




As Orkneys são ilhas de sonho, com pequenas cidades misteriosas como fantasmas de pedra na bruma - Kirkwall, Stromness - e espantosos alinhamentos megalíticos - Brodgar. Quem lá vive sabe o que é solidão. Talvez por isso, muitos foram os que de lá partiram a explorar a América, sobretudo embarcados nos navios da Hudson Bay Co., a companhia de peles, que ali teve um activo entreposto desde 1702 até ao início do século XX.

Stromness, porto de partida para o ártico canadiano.

Bom, já vai longa a introdução. É num sítio assim que aconteceu a Betty's Reading Room.


Num nenhures afastado de tudo, com menos de meia dúzia de casas espalhadas, onde quase só resta um molhe de acostagem para o ferry, alguém que gosta muito de livros escolheu oferecer uma casita - uma cabana - como sala de leitura. Em homenagem a um ser querido, surgiu esta Reading Room que só por si me dá vontade de abalar de malas feitas para as lonjuras orkneyanas.



Podia ser só literatura de aeroporto; mas há Salman Rushdie, Umberto Eco, Graham Greene, Oscar Wilde, Hemingway, Dickens, ... - já não se fica mal.

"The truth has never been of any real value to any human being — it is a symbol for mathematicians and philosophers to pursue. In human relations kindness and lies are worth a thousand truths."
Graham Greene, Heart of the Matter



A Betty’s Reading Room foi parte de uma pequena quinta junto ao cais. Lá morava Betty Prictor, uma professora com amor pelos livros e pela leitura.


Os amigos resolveram manter a memória de Betty, abrindo a público em 2012 esta sala confortável, aquecida no Inverno, onde qualquer um se pode sentar à espera (por vezes longa) do ferry.


E pode levar os livros para acabar de ler.
Please return – eventually.’
Só na Europa - na minha Europa.


''Tingwall” é um nome de origem viking, Thingvöl­lr, que significa "campo da assembleia".  Uma das sagas nórdicas, a Orkneyinga, refere-se a uma reunião do chamado Parlamento Viking neste local em 1174.



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Esta Reading Room refresca-me a admiração pela raça e acende uma luzita de boa esperança.

10 comentários:

Gi disse...

Concordo, Mário. Esta também é "a minha Europa", e são estas coisas que resgatam a humanidade.
Sabe qual é o primeiro-ministro português que eu mais desprezo? Guterres: porque afirmou uma "paixão pela educação" e falhou a oportunidade.

Anónimo disse...

Que post tão oxigenado, tão fresco, tão limpo, tão bom. Quero ir rebolar ali e ficar.

Mário R. Gonçalves disse...

Gi,

o meu desprezo, infelizmente, vai mais para a caldeira de onde Guterres saiu.

Em Portugal uma coisa destas - a Reading Room - não era possível porque essas coisas são 'obrigação do Estado'. No mínimo, só com subsídio estatal, apoios comunitários e de preferência sob a forma de fundação.

E se alguém tivesse a originalidade nórdica de abrir uma coisa destas, os livros desapareciam, era assaltada à procura de uns tostões ou de um maço de cigarros, e vandalizada por aquele gosto só português de estragar o que está bonito, só por estragar. Teria de haver grades, cão de guarda e porta blindada. O horário de abertura excluia fins de semana e feriados.

E assim por diante.

É a gente, Gi, somos nós, incapazes de criar riqueza, sempre à espera do maná, sempre de mão estendida à riqueza dos outros. E deste caldo saem Guterres, Socrates, Barrosos e Cavacos.

Era bem mais fácil se a culpa fosse toda do 'é só fazer as contas'.

Mário R. Gonçalves disse...

humming,

nem imagina como fico contente por ter gostado. Apetece mesmo, vamos contratar um veleiro e subir os mares ?

Anónimo disse...

Era tão bom!

Fanático_Um disse...

Obrigado, Mário, por este texto tão bom e tão convidativo. Se houver um lugar a mais no veleiro...

Mário R. Gonçalves disse...

Haverá sempre lugar neste veleiro para gente de bem, F1, com muito gosto.

Anónimo disse...

Este post trouxe-me à memória a casa do Kettle's Yard de Cambridge. "Open House" ou "Open Library" a ideia é a mesma - partilhar com a comunidade os bens culturais... Concordo, Mário, em Portugal isto era impossível. O vandalismo e pilhagem rapidamente acabariam com tudo.

Mário R. Gonçalves disse...

Visitei essa casa em Cambridge, passei lá uma tarde, é um lugar mágico. Foi há dez anos, mas ainda conservo uma imagem muito viva do interior, de tal modo me marcou. Obrigado por ma recordar, Anónimo.

Gi disse...

Mário, tem toda a razão no que diz. Só que eu acho que naquela altura era possível imprimir um rumo que levaria a termos já hoje a primeira geração bem-educada do pós-74. E não estou só a falar de instrução, embora certamente também de instrução.