sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Saint-Suliac, aldeia de terreneuvas no rio Rance


Uma aldeia de muita História, Saint-Suliac.


La Rance, no leste da Bretanha, é um rio de curto percurso, uns 100 km, mas desagua numa larga embocadura sobre o canal da Mancha, semeada de centenas de ilhas e sujeita a enormes amplitudes de maré, que podem atingir 14 metros.

Oferece portanto condições óptimas para portos de abrigo e para construção naval; foi um centro importante de navegação -  várias incursões e povoados Vikings, base de corsários(*), ponto de partida de grandes expedições para sul, como a saga dos Cap-horniers que cruzavam o Cabo Horn para explorar o Pacífico. Também para noroeste: Canadá e Ártico, como os quatro " Pourquoi Pas ?" do comandante Charcot .

Três-mastros francês na Terra Nova, 1820

Não foram só os portugueses da nossa costa norte e centro a embarcar para a pesca longínqua do bacalhau ao largo do Canadá. Da pequena aldeia portuária de Saint-Suliac (**), quase todos os homens partiam ano após ano para a pesca do bacalhau na Terra Nova; a povoação pobre e isolada tornou-se próspera à custa dessa receita.

Saint-Suliac

Hoje, " petite ville au caractère"  e classificada " un des plus beaux villages de France", é uma jóia de aldeia histórica a viver do turismo.


Do século XVI ao século XIX, foi uma vila de marinheiros, marins-pêcheurs, os chamados "terreneuvas" ; mas também eram tripulantes de navios corsários, sobretudo durante as guerras, e em tempo de paz dedicavam-se ao comércio por via fluvial com Dinan e Saint-Malo.

Partiam para a Terra Nova na primavera e lá ficavam de Fevereiro a Outubro; regressavam, partiam, numa transumância anual que atingiu os maiores números  - uns dez mil homens por ano - nas décadas 1820-30-40. Em 1873, 18 marinheiros de Saint-Suliac são dados como perdidos no mar, a maior tragédia de sempre para a aldeia.


Em 1912 ainda havia partidas de três-mastros para a Terra Nova; mas a pesca intensiva moderna obrigou à interdição da pesca do bacalhau pelas autoridades canadianas, nos princípios do séc XX, para proteger uma espécie em quase extinção.


Muitas casas da aldeia estão decoradas com redes de pesca, a relembrar o seu passado de séculos:







A rua principal desemboca sobre o Rance.

Um campo fortificado, num dos extremos da baía, revela ocupação por Vikings no século X. Construíram uma povoação portuária com a forma quadrangular, enquadrada por uma cerca contínua de 600 metros. Após serem derrotados pelos Bretões em 939, abandonaram o local e retiraram-se para a Normandia.



No final da  2ª Grande Guerra, depois da invasão da Normandia, Saint-Suliac foi palco de combates intensos; as tropas do general Patton instalaram artilharia contra Saint-Malo, onde os alemães se tinham concentrado para resistir aos aliados.

A terminar deixo a " Chanson du Cap-Hornier"  de Henry-Jacques.

Au premier voyage était moussaillon.
Ho hisse, allons !
Fit l'tour du monde et tant et plus.
Dit au cap Horn en crachant d'ssus !
J't'ai eu !
J’t'aurai encor’ comme je t'ai eu !


Au deuxièm' voyage était novice.
Ho hé, ho hisse !
Fit l'tour du monde et tant et plus.
Dit au cap Horn en crachant d'ssus
J't'ai eu !
J't'aurai encor’ comme je t'ai eu !


Au troisièm' voyage était matelot,
Ho hisse, hé ho !
Fit l'tour du monde et tant et plus.
Dit au cap Horn en crachant d'ssus
J't'ai eu !
J't'aurai encor comme je t'ai 'eu !


L'quatrième voyage était capitaine,
Piquez la baleine !
Fit l'tour du monde et tant et plus.
Dit au cap Horn en crachant d'ssus :
J't'aî eu !
J't'aurai encor comme je t'ai eu !


Du cinquièm' voyage n'est point revenu,
Good bye, foutu !
Fit l'tour du monde mais n'en r'vint plus.
Et le cap Horn en crachant d'ssus,
Lui dit : j’t’ai eu !
J't'ai eu, mon gars, mieux qu'tu m'as eu !



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(*) Distinguiu-se o corsário Thomas-Auguste Miniac de La Moinerie, que tomou o navio britânico de 56 canhões "HMS Ruby" em 1707, e comandou o cerco do Rio de Janeiro en 1711
(**) Saint-Suliac, Saint-Malo, Saint-Lunaire... nomes bretões de monges e santos.



7 comentários:

Fanático_Um disse...

Obrigado, Mário. Sempre que aqui venho, deleito-me e, sobretudo, enriqueço!

Mário R. Gonçalves disse...

E obrigado pela visita !

Lamento não haver nada sobre música a relatar deste meu passeio; gosto muito da Bretanha, identifico-me bastante com o território e o povo, mas musicalmente é uma nulidade absoluta - só tem umas canções de inspiração dita céltica. Nas cidades, não há orquestras, salas de concerto ou de ópera decentes. Não sei a razão, mas é assim. Muitas livrarias, muita literatura, bastante pintura, e é tudo.

Nem me lembro de um único músico Bretão !

Gi disse...

Ah, Mário, e as Folles Journées de Nantes?

Gi disse...

terreneuvas, assim, com a?
Curioso.
O que eu gosto de visitar as pequenas cidades e as vilas!

Mário R. Gonçalves disse...

Gi, em rigor é capaz de ter razão - a zona de influência das Folles Journées abarca a Bretanha. Mas, por mal dos Bretões, desde 1956 que Nantes é capital do departamento Loire-Atlantique, separado da Bretanha. Não têm sido poucos os esforços e manifestações por uma Nantes bretã, reunindo as duas regiões numa só. Do que conheço, a Loire-Atlantique já tem mais parecença com o Sul (La Rochelle, Bordeaux) em arquitectura, geografia e variante linguística.

Por enquanto, as Folles Journées não são um festival da Bretanha... e de qualquer modo vive de convidados e orquestras de outras bandas.

Terreneuvas, sim, também foi novidade para mim. Un terreneuva, masculino.

Anónimo disse...

O blog mais bonito, mais deleitoso de todo o sempre e mais além. O único que vale um bom chá para acompanhar, como um livro.
Que continue a viajar assim e a emprestar-nos o que viu. Obrigada.

Mário R. Gonçalves disse...

Ana! Isso é coisa que se diga? Estou babadinho que nem um bébé.

Para castigo, dedico-lhe o próximo post. Espero que ponha um chazinho a aquecer. Chávena de porcelana, hein ? :)