terça-feira, 21 de outubro de 2014

Génese do zero: o sunya indiano.


Volto à matemática com um assunto em tempos bastante debatido mas hoje já bastante claro:

Onde foi descoberto o zero ?

No início do segundo milénio a.C., os antigos babilónios da Mesopotâmia usavam já um sistema numérico posicional nas suas tabelas astronómicas estelares. E sempre que necessário, deixavam um espaço entre os símbolos para indicar um lugar vazio (onde hoje utilizaríamos o símbolo zero).

O 'Plimpton-322' (Mesopotâmia, ~1800 a.C.), tabela de 5 colunas com as relações no triângulo rectângulo, que antecipa Pitágoras. Do tamanho de um iPad, note-se, já durou 4000 anos !

Muitos séculos mais tarde, os babilónios selêucidas, sucessores de Alexandre o Grande no território que é hoje o Iraque, inventaram um símbolo para substituir esse espaço vazio : duas ‘cunhas’ inclinadas.
Assim, o mais antigo símbolo conhecido para o zero surge, cerca de 300 a.C., em muitas placas de argila babilónicas cobertas de escrita cuneiforme.
Este símbolo não tinha contudo existência própria, não se usava isolado, ou no final de um número. Faltava um ‘conceito’ de zero.

Os antigos gregos foram fortemente influenciados pela astronomia babilónica e pela matemática a ela associada. Devem igualmente ter precisado de um símbolo para o zero, e escolheram o mícron barrado, ō , que os árabes vizinhos também passaram a usar; mais tarde, na época bizantina, a barra caiu e passou a utilizar-se o ómicron, décima quinta letra do alfabeto grego, correspondente ao O aberto). Porém, este símbolo também não era ainda um número, nem sequer um conceito claro. Não tinha função posicional, simbolizava apenas a quantidade nula. Mas simbolizar o vazio, o nada, já era obra !

Vamos então à questão mais importante de tratar o zero como um número de pleno direito, será essa a verdadeira invenção. O símbolo actual do zero chegou-nos da Índia, tal como outras importações, via califado de Bagdad, juntamente com toda a notação decimal. Parece não haver dúvida de que, em 500 d.C., os hindus finalmente consideravam o zero como um número, mais do que um mero símbolo.

O Lokhavibhaga, com cálculos astronómicos, refere o 'sunya' .

Lokhavibhaga, um tratado de cosmologia sânscrito de 485 d.C., é o documento mais antigo encontrado com referência ao sunya, zero posicional, em cálculos usando a numeração decimal. Sunya, significando ‘vazio’, é a origem etimológica do ‘zero’ árabe e europeu (syfr, cifra, zéfiro, chiffre).

Num outro manuscrito, de datação incerta mas provavelmente anterior, designado por Bakhshali, o enorme 13.107.200.000 aparece assim escrito:

sunya sunya sunya sunya sunya dvi sapta sunya eka tri eka
(ler da direita para a esquerda)

Sem dúvida um sistema decimal, em que o sunya era claramente um zero posicional.

Uma das 70 folhas do manuscrito de Bakhshali, encontrado perto de Peshawar(*).

A numeração usada no manuscrito Bakhshali.

Brahmagupta, o maior de todos os cientistas indianos medievais, afirmou correctamente em 628 d.C. que zero multiplicado por qualquer número finito dá zero e descreveu a impossibilidade da divisão de um número por zero. Que progresso!

O majestoso forte de Gwalior, junto ao qual há uma capela (Chaturbhuj) onde se encontrou o mais antigo símbolo do zero.


O documento mais antigo conhecido contendo o símbolo de zero (o) é uma placa de pedra gravada em sânscrito, com cálculos aritméticos, encontrada na cidade indiana de Gwalior (perto do Taj Mahal), numa capela hindu adjacente à grandiosa fortaleza da cidade. A capela é de 876 d.C., data que foi atribuída à placa.

Vê-se nitidamente o número 270.

Durante o século IX, o sunya indiano tornara-se de uso comum, já tinha chegado à Pérsia, era conhecido nas escolas de Bagdad (Al-Khwarismi), de onde foi transmitido para o norte de África.

Em 976, o Codex Vigilanus (Pamplona, Espanha) foi um dos primeiros documentos europeus a introduzir os “algarismos” de Al-Kwarismi, mas ainda sem o zero !

Excerto do Codex Vigilantus.

A chamada ‘numeração árabe’ - devia ser 'numeração indiana' ! - evoluiu por toda essa zona de influência muçulmanaa à volta do Mediterrâneo com variantes locais, até ser descoberta pelo académico italiano Fibonacci, que a trouxe para a Europa no início do séc XIII, publicando o Liber Abaci. Durante muitos anos a numeração romana continuou a reinar no resto da Europa católica, impedindo qualquer avanço. O sistema só substituiu de vez a numeração romana no séc. XVI !

Escreve Fibonacci: …"os nove algarismos e o sinal 0, a que os árabes chamam zephyr” - o zero ainda é coisa à parte!

Nota: não há explicação para a coincidência entre o símbolo grego e o símbolo indiano, na sua forma de pequeno círculo. Pode ter sido o acaso, ou pode ter havido transmissão, nenhum indício conhecido permite decidir.


A resposta à pergunta “ Quem inventou o zero” poderá ser a seguinte:

- os babilónios inventaram o primeiro símbolo do zero.                                  
- os gregos foram os primeiros a compreender o conceito de zero.                
- e os indianos utilizaram o zero pela primeira vez como número de pleno    direito, um entre os dez algarismos num sistema numérico decimal.           



É curioso que mesmo no mais elementar sistema de numeração – o sistema binário, só com dois algarismos – um deles tenha de ser zero. Mais que um algarismo qualquer, o zero é um algarismo imprescindível!


Alguns links: 1  2  3

-------
* Ficando Peshawar no Paquistão e não na Índia actuais, há paquistaneses a reivindicar para si a herança da 'invenção' do zero...

4 comentários:

Gi disse...

Excelente lição, Mário.
Só um reparo: tem que se ler aquele número da direita para a esquerda e não o contrário.

Mário R. Gonçalves disse...


Tem toda a razão, Gi, obrigado! Está corrigido.

Acredita que reli umas 20 vezes sem dar conta? O propósito da nota era esse mesmo, ler "às avessas".

Posso dar-lhe a Grã-Ordem de Correctora Honorária so Livro ?

Gi disse...

:-D

Virginia disse...

Hoje lembrei-me do seu blogue, a ouvir uma astrónoma do SETI - Jill Starter - a dizer que devemos considerar-nos "Stardust in the Universe". Ela falou das hipóteses de haver extra-terrestre em biliões de planetas e galáxias...

Ainda bem que existimos ;-)