Quase não há nada de verdadeiro na história de
J.M.W. Turner contada no filme "
Mr. Turner" de Mike Leigh. Quase todos os factos estão ou distorcidos, ou invertidos na ordem temporal, ou são simplesmente inventados, enquanto outros que seriam fundamentais são omissos - a formação académica na Royal Academy, onde entrou como prodígio com apenas 14 anos e gozava de grande estima, as viagens frequentes pela Europa, em particular as idas à Suíça, Roma, Veneza, França, onde era bem-vindo na corte; a leitura constante de poesia que lhe incutiu ideais platónicos; o contacto com as as ciências, com especial interesse pela mecânica hidráulica - alguns quadros são belos estudos da hidrodinâmica das ondas e das marés. Onde estão estes traços de carácter no filme ?
É quase repelente a forma como Mike Leigh faz da pessoa de Turner um boçal abrutalhado quando de facto ele era educado num dos melhores colégios londrinos, era divertido, afectuoso e informado - além da hidrodinâmica, também estudava meteorologia, por causa da formação e tipos de nuvens; estava a par, com grande curiosidadade, dos progressos da tecnologia (máquinas a vapor, fotografia); frequentava as sociedades científicas de Londres - e embora não se "cuidasse", como acontece com muitos artistas, nem por isso tinha má figura. Mas é nisto que o filme insiste: num estilo "grunho" totalmente inventado.
Turner não era elegante, nem pedante, nem frequentava a "sociedade"- preferia uma vida culta e viajada mas algo solitária. Era de facto misantropo mas não da forma simiesca que o filme mostra. E mesmo misantropo não deixava de ser requisitado pela elite social - já no final de vida, em 1840, em vez de estar decrépito e desmiolado como no filme, foi de viagem a França e recebido pelo Rei seu amigo Luís Filipe.
Um testemunho esclarecedor da sua amiga Clara Wells:
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Of all the light-hearted, merry creatures I ever knew, Turner was the most so; and the laughter and fun that abounded when he was an intimate in our cottage was inconceivable, particularly with the juvenile members of the family. I remember coming in one day after a walk, and when the servant opened the door the uproar was so great that I asked the servant what was the matter. 'Oh,only the young ladies (my young sisters) playing with the young gentleman (Turner), Ma'am.' When I went into the sitting room, he was seated on the ground, and the children were winding his ridiculously long cravat round his neck;he said, 'See here, Clara, what these children are about!'(*)
Que Mike Leigh tenha querido fazer um auto-retrato como artista malquisto, nada a reclamar, está no seu direito; que se tenha servido de uma figura histórica consagrada que pertence à herança cultural britânica e europeia fazendo o retrato de um labrego lascivo, grosseiro e intratável, isso sinto-o como insulto pessoal e uma falta de respeito. Abaixo.
Bola preta.
Fiquemos antes com
Joseph Mallard William Turner.
Dutch Boats in a Gale, 1801 - um dos tais estudos de dinâmica das ondas e marés.
Fishermen upon a Lee Shore, 1802 - talvez a "onda" mais fantástica de toda a Pintura.
Na fase final, Turner passou a dar mais importância aos efeitos de luz e côr do que ao realismo. A dinâmica passou a estar imbuída nas próprias pinceladas, mais depuradas, quase abstractas. É a fase mais "mística" das sua visão platónica do mundo.
Waves Breaking on a Lee Shore, 1840
Peace- Burial at Sea, 1842
Snow Storm - Steam Boat off of a Harbour's Mouth, 1842
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(*) De todas as criaturas felizes e bem dispostas que conheci, Turner era-o mais do que qualquer outro; e o riso e a alegria que abundavam quando vinha à intimidade da nossa cottage era inconcebível, sobretudo com os mais novitos da família. Lembro-me de um dia, ao regressar de uma passeata, quando o criado abriu a porta a barulheira era tanta que perguntei o que se passava. "Oh, só as meninas (as minhas irmãs) a brincar com o jovem senhor (Turner)". Quando entrei na sala de visitas, estava sentado no chão e as crianças enrolavam-lhe a comprida gravata à volta do pescoço. E disse-me, "Estás a ver, Clara, o que estas crianças me fazem !".