segunda-feira, 15 de junho de 2015

Daddy Longlegs, o combóio das pernas altas


Indústria, s.f., do latim industria , actividade.
- composta do prefixo “endo” = internamente + “sfruere” = pre­parar.


Foram heróicos, românticos, repletos de utopia, os belos dias da indústria. E se isso foi notável em toda a Europa, é na Inglaterra victoriana que mais se exaltou a paixão pela indústria, pelas máquinas, pela ciência aplicada, as descobertas e invenções que proporcionaram novas tecnologias. Estávamos no fim do século e a vida era bela. (*)

Brighton em "fin de siècle", uma estância de veraneio muito "chique".

Exemplo extravagante dessa quase loucura é o combóio de pernas altas, o "Daddy Longlegs", que percorreu durante os últimos anos do séc. XIX as praias da costa sul, no Sussex, junto à muito frequentada Brighton - o primeiro e único caminho-de-ferro submerso !

Tudo começou com um 'combóio eléctrico', o primeiro da História, requinte de uma indústria que aqui e ali já procurava evitar danos colaterais. Obra do engenheiro Magnus Volk, a precursora composição começou em 1883 a percorrer menos de 2 km de frente marítima ao longo do areal de Brighton.


Mas Volk queria prolongar a via férrea até à vizinha vila de Rottingdean, para transportar veraneantes. Só que, a nascente, erguiam-se enormes falésias brancas, semelhantes às de Dover, mesmo junto ao mar. Fazer a linha subi-las em rampa íngreme até ao alto e depois voltar a descer na estância seguinte era incomportável, como também o era recorrer a um viaduto encostado às instáveis falésias.
Falésias de gesso branco de Rottingdean.

Magnus Volk era descendente de um relojoeiro alemão, fascinado por maquinaria de precisão. Desde 1890, durante meses a fio, observou as marés e a consistência do solo arenoso junto à costa. E optou pelo inacreditável: construir a via à cota zero, abaixo da linha de maré, de modo a ficar parcialmente submersa apenas na maré alta ! A construção começou em 1894, e em 1896 a engenhoca entrou em funcionamento.


A linha consistia em dois pares de carris, distando cinco metros e meio um do outro, e mantendo uns seguros 25 metros da falésia.

O "combóio" era afinal uma única mas enorme estrutura de ferro - uma carruagem luxuosa,  com varanda a toda a volta e um trolley no tejadilho, tudo montado sobre 4 altas pernas com rodas. Motores com a potência de 25 cavalos transmitiam movimento por correias ao longo da pernas até às rodas. A electricidade corria num cabo elevado, ao longo da linha, por uma sucessão de mastros. A corrente de retorno vinha pelos carris na maré baixa, e na maré alta vinha pela... água do mar!


Nada que a nossa ASAE aprovasse. Embora a segurança fosse garantida pela presença obrigatória de um Capitão da Marinha (!) a bordo, e de barcos salva-vidas, como se de uma embarcação se tratasse.

De facto parecia uma barca, elevada sobre 4 pilares, a voar lá em cima, vários metros sobre as ondas. Nada menos que 45 toneladas de ferro, na altura não se brincava, solidez acima de tudo. Justamente baptisado Pioneer por Volk, ficou conhecido por Daddy Longlegs, ou "Papá de pernas altas".

Só no ano de 1897, 44 282 passageiros viajaram no serviço de combóio de Volk.


O Longlegs funcionou entre 1896 e 1901 com enorme sucesso, o serviço a bordo era requintado ( salão com cortinados, estofos, chá e bolinhos), e tudo 7 metros metros acima das ondas. Para 160 pessoas.


O combóio foi várias vezes obrigado a parar, por avarias ou para manutenção. Uma vez até tombou de lado durante uma tempestade e teve de ser reconstruído à pressa para a temporada de Verão.

O Daddy Longlegs chegou a ser comparado às máquinas dos marcianos no livro de Wells "Guera dos Mundos", acabado de publicar em 1898.


Vários contratempos foram prejudicando a regularidade das viagens a partir de 1900. Mas o que ditou a morte do Longlegs foi a falta de potência eléctrica. Arrastava-se penosamente durante a forte maré alta. Mover as 45 toneladas requeria mais poderosos motores eléctricos, e Volk não tinha meios para fazer esse investimento. Desmontado em 1901, enferrujou até 1910, e foi para a sucata.

Volks dirijindo-se para o seu escritório, sobranceiro à linha Brighton - Rottingdean; o edifício de madeira ainda existe, agora como Museu.


Do excêntrico invento, restam hoje vestígios da linha facilmente reconhecíveis na maré baixa, e o pequeno V.E.R., "Volks Electric Railway", em Brighton, uma atracção turística que percorre a praia.



Ainda continua a funcionar no troço original, desde 1910 entre o Brighton Pier e o areal, este brinquedo de carruagens eléctricas, que podem ser engatadas, nas horas de ponta, para maior capacidade.




Tive oportunidade de fazer a curta viagem durante a minha visita ao Surrey, em Junho de 2013.




Em 1910, era já o "new century" eduardiano, mas a euforia das invenções continuava. Que vitalidade, que poética criativa inspirava a indústria, esse motor económico que Portugal nunca, verdadeiramente, conheceu. E foi essa uma grande, grande fraqueza nossa.



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(*) agora que escrevi isto pus-me a pensar: terá sido esse fim de século - em que na Europa ainda vivíamos na inocência de genocídios e campos de morte, na inocência da poluição e do efeito de estufa, quando as utopias do "progresso" e da "descoberta" apaixonava as almas - a era em que fomos mais felizes ?


1 comentário:

Gi disse...

Antes da "Arte Feia"...