Resolvi publicar (traduzindo) este conto famoso de Júlio Cortázar, objecto de numerosos estudos e análises desde o sério ao especulativo, onde se identificam as referências óbvias - o Borges que inspirou este meu Livro de Areia - e outras não tanto: os paradoxos espaciais de Escher, Gödel e a lógica matemática, os universos paralelos, a duplicidade de estados na física quântica. É inacreditável como tão curto texto engloba tanta riqueza conceptual. Italo Calvino abordaria três anos mais tarde os mesmos temas no genial 'Se numa noite de inverno um viajante' - mas essa é uma longa narrativa de centenas de páginas.
Este Continuidad de los parques foi publicado pela primeira vez em 1964 no livro 'Final del juego'.
É melhor ler sem spoilers...
Julio Cortázar, Continuidad de los parques
Tinha começado a leitura da novela dias antes. Abandonou-a por negócios urgentes, voltou a abri-la no combóio quando regressava da fazenda; deixava-se interessar lentamente pelo enredo, pelo desenho das personagens. Nessa tarde, depois de escrever uma carta ao seu procurador e de discutir com o caseiro uma questão de parcerias, voltou a abrir o livro na tranquilidade do escritório que dava para o parque de carvalhos. Recostado na poltrona favorita, de costas para a porta que o tinha incomodado como irritante possibilidade de intrusões, deixou que a mão esquerda acariciasse uma e outra vez o veludo verde e pôs-se a ler os últimos capítulos. Retinha na memória sem esforço os nomes e as imagens dos protagonistas; a ilusão novelesca conquistou-o quase de imediato. Gozava o prazer quase perverso de se desgarrar linha após linha de tudo o que o rodeava, e sentir ao mesmo tempo que a cabeça descansava comodamente no veludo do elevado encosto, que os cigarros estavam ao alcance da mão, que para além dos janelões o ar do entardecer dançava sob os carvalhos. Palavra a palavra, absorvido pelo sórdido dilema dos heróis, deixando-se levar até às imagens que se concertavan e adquiríam cor e movimento, foi testemunho do último encontro na cabana do monte. Primeiro entrava a mulher, receosa; depois chegava o amante, com a cara ferida pela chicotada de um galho. Admiravelmente ela estancava o sangue com os seus beijos, mas ele afastava as carícias, não tinha vindo para repetir as cerimónias de uma paixão secreta, protegida por um mundo de folhas secas e trilhos furtivos. O punhal já amornava contra o seu peito, e por baixo a liberdade latia, agachada. Um diálogo ansioso corría pelas páginas como um rio de serpentes, e sentia-se que tudo estava decidido desde sempre. Até essas carícias que enredavan o corpo do amante como querendo retê-lo e disuadi-lo, desenhavam abominavelmente a figura de outro corpo que era necessário destruir. Nada tinha sido esquecido: álibis, azares, possíveis erros. A partir dessa hora cada instante tinha o seu emprego minuciosamente atribuido. O implacável exame a dois interrompia-se apenas para que uma mão acariciasse uma maçã do rosto. Começava a anoitecer.
Sem se olharem já, rigidamente atados à tarefa que os esperava, separaram-se na porta da cabana. Ela devía ir pelo caminho que seguia para norte. Do outro caminho oposto, ele voltou-se um instante para vê-la correr de cabelos soltos. Correu ele também, protegendo-se com as árvores e as sebes, até distinguir na bruma malva do crepúsculo a alameda que conduzia até à casa. Os cães não devíam ladrar, e não ladraram. O caseiro não estaría a essa hora, e não estava. Subiu os três degraus do alpendre do pórtico e entrou. Do sangue que lhe galopava nos ouvidos chegavam-lhe as palavras da mulher: primeiro uma sala azul, depois uma galería, uma escadaria forrada. Ao alto, duas portas. No primeira quarto ninguém, ninguém no segundo. A porta do salão, o punhal em riste. A luz dos janelões, o elevado encosto de uma poltrona de veludo verde, a cabeça do homem na poltrona lendo uma novela.
Borges e Cortázar entendiam a literatura como un 'jogo' entre autor e leitor (homoludens), um jogo armadilhado, que basicamente consistia em estabelecer de início uma narrativa banal, quotidiana, mas onde subitamente irrompem elementos fantásticos, absurdos ou paradoxais. Em Cortázar, o tempero é uma ironia cheia de piscadelas de olho, como a "ilusão novelesca" que o protagonista encontra no livro, a ilusão mesma com que ele Cortázar nos está a seduzir, ou o "prazer quase perverso" do leitor ao mesmo tempo que acaricia o veludo. Todo o conto foi minuciosamente trabalhado, não sei quantas vezes, durante quanto tempo, até ter precisamente as palavras necessárias, com detalhes absolutamente geniais que nunca lá estão por acaso.
Exemplos:
- a dualidade conto/novela: no conto, era o entardecer ; na novela dentro do conto, começava a anoitecer. Também o "sórdido dilema", uma dualidade que abarca tudo afinal - homem/mulher, autor/leitor, conto/novela.
- os três degraus da entrada para um mundo que deixa de ser a dois e passa a três (dimensões, personagens, espaços); há três divisões e as primeiras duas estão vazias, a terceira - o salão - é um mundo alternativo ! O conto assenta quase todo na dualidade mas termina a três, demonstrando 1+1 = 3 !
O final, em narração cinematográfica, hitchcockiana, é de mestre. E quem é a vítima, a vítima que se liberta apunhalando (-se) a si própria ? Quem mais, se não o leitor ? ah ah ah ah.
Quantos mais se lê, mais trilhos furtivos se descobrem, são os trilhos que Cortázar furtivamente constrói para nosso pasmo.