Já há alguns meses, em leitura de Sylvain Tesson*, estive a viver com ele numa cabana de floresta à margem do Lago Baikal, no sul da Sibéria profunda. Apesar do feitio rebarbativo do personagem, a vida de eremita que Tesson narra no livro em forma de diário é bastante sugestiva e fora do comum, e despertou-me este interesse pelo Lago, ou melhor: voltou a despertar, porque já vinha das viagens de Miguel Strogoff a terras para lá do ocidente mas ainda não do oriente, e da minha 'viagem' de trans-siberiano a Irkutsk, há uns anitos, aqui no Livro. E do poema de Blaise Cendrars. Mais uma viagem literária e mítica.
Nous étions dans le premier train qui contournait le lac Baïkal On avait orné la locomotive de drapeaux et de lampions.
B. Cendrars
Atendendo à extensão do relato, vou publicar em três partes. A primeira:
O Lago Baikal fica no coração da Eurásia, encaixado no maciço das montanhas siberianas com o mesmo nome. Foi praticamente desconhecido dos europeus até ao séc. XVII, quando ouviram falar dele em Tomsk. Desde então, a região do Baikal foi refúgio de dissidentes ou fugitivos das prisões dos vários regimes, mas também de eremitas que procuravam isolamento, frugalidade e comunhão com a natureza. Algumas cabanas semeadas nas margens a norte do lago dão abrigo a essa vida alternativa na Rússia mais interior.
Apesar do crescimento do turismo, sobretudo no sul do lago, visitado pela linha do trans-siberiano, a maior parte da região centro e norte do Baikal - encostas arborizadas, baías e penhascos, ilhas e rios afluentes - continua a ser um segredo bem guardado.
Um excelente mapa, da National Geographic.(clicar para ver grande)
Fazendo parte da bacia do rio Yenitsev, o lago é alimentado por mais de 300 rios, os mais importantes sendo o Selenga e o Snezhnaya. Mas um só um rio nasce do lago drenando as suas águas - o Angara, que "nasce" junto de Listvyanka, segue por Irkutsk e desagua no grande Yenitsev.
Aqui têm lugar os episódios centrais e dramáticos do Michel Strogoff de Jules Verne: "(...) à six heures du soir, une immense nappe d’eau se déroulait aux pieds de Michel Strogoff. C’était le lac Baïkal."
Ozero Baykal, о́зеро Байка́л
Coordenadas: 53-54° N, 107-108° E
Povoações litorais: Listvyanka (~2000 hab.), Sludyanka (Sludjanka), Baikal, Nikola.
O Baikal é o lago mais volumoso do planeta, e contém mais de 20 % de toda a água doce disponível na Terra. É muito. É um 'mar ' de água limpa e cristalina, com 636 km de extensão máxima e ultrapassando 1640 m de profundidade, no meio da vasta tundra semi-desértica interrompida pela floresta circundante.
O Baikal deve ser também o mais antigo dos lagos - estima-se uma idade de 25 milhões de anos.
Sendo rodeado de montanhas, as terras litorais do lago cobrem-se de floresta do tipo taiga - cedros, lariços, pinheiros, bétulas, abetos - que desce a encosta até perto da água.
Bosque de bétula (ou vidoeiro) à borda de água.
As temperaturas normais variam entre -19 °C de Inverno e uns moderados 14 °C no Verão.
Nos dias melhores, a visibilidade vai até 40 m de fundo.
Água assim não pode deixar de ser procurada pelos animais do lago - aqui um lince da taiga siberiana :
Na bacia do Angara e na envolvente do lago têm diminuído raposas, martas e esturjões, todas espécies 'preciosas' e as mais procuradas por caçadores e pescadores. Mas os alces, veados, ursos e focas são mais numerosos.
A raposa da reserva Angara/Baikal, de caça interdita.
Marta Zibelina do Baikal, rara e protegida.
Os esquilos abundam na floresta da taiga.
A 'Cerceta do Baikal' (Anas Formosa), uma variante local de pato.
Chapim-azul.
O Omul , da família do salmão, é uma das variedades de peixe mais apreciadas; há também trutas, umblas e uns poucos esturjões. No mercado de Listvyanka, umbla e omul abundam, fumados ou para grelhar.
Ao longo do litoral há algumas praias de areia dourada, rodeadas de cenário de sonho:
Levaria quatro meses a percorrer todo o perímetro do lago a pé. Montanhas, baías, taiga, estepe, tundra, pradaria, pântanos e areais vão alternando ao longo dos 2000 km de costa.
Barguzin, na costa leste (Buryatiya)
Uma das cabanas de abrigo para pescadores, caçadores, lenhadores ou eremitas. Muitas foram construídas por foragidos ou refugiados políticos.
A Ilha de Olkhon
A 53° 09' N, 107° 23' W, Olkhon é a maior ilha do lago, e a sua maior atracção turística, pelas muitas enseadas e areais entre rochedos e falésias - uma espantosa estação balnear na Sibéria central. A ilha está coberta de vegetação rasteira de estepe, alguns lariços e até uma zona de dunas de areia como se fosse um pequeno "deserto", que se move conforme os ventos.
Baía de Peschanaya - um areal cénico banhado pelo azul esmeralda do Baikal. Já há um restaurante, e o 'Svet Lany Resort'.
A baía de Peschanaya é outro local muito procurado, pela praia de areia, pela água e pelas dunas, onde nascem árvores invulgares, com as raízes expostas por cima da areia. As dunas movem-se constantemente por acção dos ventos.
A ilha é habitada por nativos da etnia Buryat, ainda no estádio do shamanismo, com vários locais de culto e lendas sobre a Criação. É uma população pobre, habituada a séculos de abandono, que aprende agora a viver... do 'turismo' ! Desde 2005, quando chegou a elctricidade.
Tornou-se o bilhete postal mais conhecido do lago.
A principal povoação é Khuzhir, onde há alojamento e a maior parte dos serviços - centro de saúde, correio, polícia, mercearia, restauração, internet, aluguer de bicicletas... - e algumas izbas, como tinha de ser.
Casa tradicional (izba) em Khuzhir.
Nem falta a igreja ortodoxa, pequenita mas muito decorada, construída em 2000, Bozhiyey Materi Derzhavnaya.
Panorama 360º aqui.
Mas a maior riqueza é o território.
Baía de Uzuri, perto de Khuzhir - areia fina e águas temperadas:
O Cabo Khoboy é o extremo setentrional da ilha:
E mais haveria para mostrar de Olkhon, ilha fora do tempo, Ilha do Nunca, ou Ilha do dia Antes... mas fica para a próxima.
Mapa de Olkhon
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A seguir, o belíssimo Baikal gelado de Inverno.
* Dans les forêts de Sibérie, Folio
2 comentários:
Uma maravilha, Mário, muito obrigado. Visitar este seu espaço é sempre um bálsamo para podermos sonhar com aquilo que, provavelmente, nunca poderemos desfrutar em vida. Mas aqui ficamos com uma ideia de como gostaríamos de o poder fazer.
Espero que continue a gostar das próximas, Fanático_Um. Uma vida não chega para tanto mundo, era preciso recomeçar... :)
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