segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

A Mário Soares, sem muito rancor nem excessiva gratidão


Que devemos nós a Mário Soares ?

Começa o problema logo com o "nós". Não há "nós" nenhum, é uma ficção hipócrita. O país onde vivo não é uma nação, e que fosse, não é uma sociedade colectivista. É difícil encontrar duas pessoas concordantes sobre o caminho que "nós" devemos seguir.

Então, na primeira pessoa: que devo eu a Mário Soares ?

Dizem alguns: a liberdade. Bom, o 25 de Abril não é certamente a ele que o devo. A queda da ditadura não teve mãozinha de Soares, acontecia com ou sem ele. Já o que veio a seguir, sim: quem é que segurou isto com empenho, garra, toda a energia, para evitar que descambasse em nova ditadura ou em guerra civil ? Não me ocorre mais ninguém senão Mário Soares. Por todas as forças que em sua volta reuniu para assegurar um regime de democracia moderna, europeia, posso estar muitíssimo grato a Mário Soares.

Fez uma má descolonização, sim. Na verdade acho que se esteve nas tintas para as colónias e quem lá vivia. Ele só pensava "Europa". Queria despachar "aquilo" como ganga do Estado Novo, e tinha até vergonha desse passado (eu também tenho). Mas bem podia ter nomeado alguém mais competente, consensual, habilidoso, que evitasse deixar tudo na mão de mercenários contratados pela Rússia de então e ao serviço dos seus paus mandados. Um desastre, cujo preço mais elevado não fomos "nós" a pagar.

Meteu o socialismo na gaveta. Sim, teve consciência de que o país não possuía riqueza nem económica nem financeira para sustentar um bom estado social, modelo francês que era o seu - e veja-se como evolui o modelo francês agora. Soares teve de optar pelo compromisso com os credores, como mais tarde outros repetiram. Mentiu - foi um hábil mentiroso, dentro de uma linhagem que vinha da 1ª República e teve excelentes continuadores. Nunca conseguiu uma orientação económica de progresso para o país, não sabia nem queria saber de finanças, ao contrário do "outro".
Balanço: no governo do país falhou clamorosamente.

Parece-me que o que orientava a acção política de Soares era acima de tudo a Europa. Queria Portugal na Europa, na sua Europa, a de Mitterand e Kohl, para usar na lapela, fazendo parte desse clube de élite socio-cultural onde a guerra e a pobreza extrema parecem banidas. Fez tudo para que o país entrasse na comunidade, nunca o vi tão feliz como nesse dia do brilharete nos Jerónimos. Mesmo que as razões dele não sejam exactamente as minhas, posso de novo estar muitíssimo grato a Mário Soares, a Europa é o espaço onde quero viver, e em grande parte ele contribuiu, fosse por bem ou por mal. Nesta matéria teve a visão do 'Príncipe'...

Nunca era totalmente inocente e desinteressado, claro. Ia-se percebendo que cultivava amizades pouco morais, pouco saudáveis, e que o famoso "clã" orientava cada vez mais a sua acção. O poder que ele adquiriu usou-o em grande parte para benefício dessa reprovável entourage. Começou a proferir disparates e a fazer opções incongruentes. E acabou mal.

É triste, mas mesmo o melhor (talvez) que Portugal teve nas últimas décadas, era um oportunista amigo de corruptos e até de patifes, mas que muitas vezes esteve no combate do lado certo, e à hora certa - certa para nós ? ... enfim, certa para mim.

Hoje, nem muito grato nem muito rancoroso, retribuo, à sua maneira deselegante:
- Ó Doutor, vá-se embora, vá-se embora !


2 comentários:

Virginia disse...

Post genial, Mário. Equilíbrio e inteligência, é assim que se deve ler a História....
Partilhei no Facebook.
Abraço

Gi disse...

Também gostei muito desta sua maneira de olhar e falar de Mário Soares. Eu não me pronunciei até agora: também lhe reconheço defeitos e qualidades, entre as quais a coragem e a lealdade aos amigos; pena que escolhesse mal os amigos...