quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Não há morte, segundo Camilo


Camilo Castelo Branco era uma estranha criatura, a um tempo genial e tacanho, cosmopolita e pacóvio, culto e inteligente mas pateta. É verdade, tem esta dualidade que torna a leitura estimulante e logo a seguir desoladora.

Reli na edição do Expresso o preâmbulo de "Coração, Cabeça e Estômago": é culto, inteligente, brilhante. O resto da obra é menos que medíocre. Deixo aqui a transcrição dos primeiros parágrafos desse preâmbulo, em que o narrador - talvez Camilo - se dirige a um amigo para lembrar um Silvestre da Silva que ambos conheceram. Trata-se talvez da mais bela página sobre a Morte que jamais li. Apetece mesmo estar morto. Ao contrário das lamentações e promessas de paraíso das crenças religiosas, a Morte seria uma gloriosa renascença da pessoa como Universo !

  – O meu amigo Faustino Xavier de Novais conheceu perfeitamente aquele nosso amigo Silvestre da Silva…
  – Ora, se conheci!… Como está ele?
  – Está bem: está enterrado há seis meses.
  – Morreu?!
  – Não morreu, meu caro Novais. Um filósofo não deve aceitar no seu vocabulário a palavra morte, senão convencionalmente. Não há morte. O que há é metamorfose, transformação, mudança de feito. Pergunta tu ao doutíssimo poeta José Feliciano de Castilho o destino que tem a matéria. Dir-te-á a teu respeito o que disse de Ovídio, sujeito que não era mais material que tu e que o nosso amigo Silvestre da Silva. “Ovídio cadáver”, pergunta o sábio, “onde é que pára?”  Tudo isso corre fados misteriosos, como Adão, como Noé, como Rómulo, como nossos pais, como nós, como nossos filhos, rolando pelos oceanos, flutuando nos ares, manando nas fontes, correndo nos rios, agregado nas pedras, sumido nas minas, misturado nos solos, viçando nas ervas, rindo nas flores, rescendendo nos frutos, cantando nos bosques, rugindo nas matas, rojando dos vulcões, etc. Isto, a meu ver, é exacto e, sobretudo, consolador. O nosso amigo Silvestre da Silva, a esta hora, anda repartido em partículas. Aqui faz parte da garganta dum rouxinol; além, é pétala duma tulipa; acolá, está consubstanciado num olho de alface; pode ser até que eu o esteja bebendo neste copo de água que tenho à minha beira e que tu o encontres nos sertões da América, alguma vez, transfigurado em cobra cascavel, disposto a comer-te, meu Faustino.
  O que te eu assevero é que ele deixou de ser Silvestre da Silva, há seis meses, posto que os parentes teimam em lhe ter uma lousa sobre o chão, onde o estiraram, com esta mentira: ‘Aqui jaz Silvestre da Silva.’
  Pois é verdade.



'Rojando nos vulcões' não está mal.





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