Receia-se a subida continuada das águas do mar, ameaça que poderá mesmo submergir cidades costeiras... A ideia de cataclismo oceânico não é recente, fez sempre parte dos terrores imaginários.
Platão não chegou a situar a Atlântida com rigor - talvez fosse Thera (Santorini), talvez os Açores - mas datou-a por volta de 9000 AC; o sueco Rudbeck situava a Atlântida na Suécia, cerca de 1500 AC ! Esta Atlântida bretã, transmitida oralmente, é bastante mais moderna: tem lugar durante a transição da cultura celta druída para o cristianismo; fica na região de Douarnenez, e chama-se Ys.
A primeira versão escrita foi recolhida por Émile Souvestre em 1844, da boca de um pescador bretão. A versão original derivava da mitologia celta, devia ser mais bela e mais violenta; Souvestre readaptou-a de modo a ser aceite pela Igreja, e embuiu-a de moralismo cristão: uma fábula onde se condenam os impulsos humanos.
Mas a lenda de Ys conserva apesar de tudo uma matriz pagã. Tudo se passa na bravia costa atlântica da Bretanha, sujeita a violentas marés.
No reino da Cornualha durante o século V, o poderoso rei Gradlon, senhor de uma frota que dominava os mares, nomeia Corentin bispo de Quimper e promove-o a governador da cidade. A pedido da filha Dahut, que odeia o bispo, instala-se na nova cidade de Ys, uma fortaleza protegida do mar por altos diques, com apenas uma entrada - uma éclusa de bronze para deixar os barcos de pesca entrar no porto. Gradlon tem as únicas chaves dessa porta, num cordão que traz ao pescoço.
Dahut, de mãe celta e de uma beleza selvagem como o oceano, é afinal uma feiticeira; como acha Ys parada e triste, usa os seus poderes para a embelezar e animar, torná-la sumptuosa, com frequentes festas palacianas para onde convida sucessivos amantes. Acabam todos mal, sufocados por um feitiço e lançados do precipício sobre o mar.
Um dia, surge na cidade um príncipe vistoso, vestido de vermelho, logo convidado por Dahut. Mas este era um príncipe estranho, de longas mãos e unhas recurvadas, um príncipe dos infernos, que levará a princesa Dahut à perdição ao conseguir que ela se apodere da chave enquanto o rei Gradlon dorme. Levanta-se uma forte tempestade, as ondas rebentam contra as muralhas de bronze. Pressionada pelo príncipe, Dahut abre os diques, e o mar abate-se sobre Ys com ondas enormes como montanhas. Nem Corentin lhe pode valer.
Em desespero, Dahut tenta agararrar-se aos flancos de Morvac'h, o cavalo alado do pai, mas Corentin fá-la cair para o fundo do mar. O rei Gradlon consegue salvar-se, cavalgando sobre as ondas em direcção a Quimper.
Há inúmeras versões, têm todas em comum:
- um rei viúvo, Gradlon, com uma filha caprichosa, Dahut
- uma cidade construída para Dahut roubando terrenos ao mar
- soberba, vaidade, tirania, luxúria
- o mar vinga-se e as vagas submergem Ys
Dizem que Dahut continua a surgir sobre as ondas em noites de luar, uma sereia escovando os longos cabelos dourados...
A língua bretã ainda vive nalgumas canções; esta canta a sereia da baía de Douarnenez:
- Gwelas-te morverc'h, pesketour
- O kriban en bleo melen aour
- Dre an heol splann, e ribl an dour ?
que penteia os cabelos cor de ouro
ao sol da tarde junto à praia?
- Gwelous a ris ar morverc'h venn,
- M'he c'hlevis o kanann zoken
- Klemvanus tonn ha kanaouenn.
e até a ouvi cantar tristemente
como canta o lamento das ondas.
Stephanie Law, The forgotten bells of Ys (detalhe)
Finalmente, Édouard Lalo escreveu uma ópera romântica, que por acaso nunca ouvi:
[aos 00:48] Nicolai Gedda, 'Vainement ma bien aimée', do 'Roi d'Ys'
Ao largo da baía fica a mítica Ilha de Sein; quando as marés atingem a força máxima, o casario é fustigado como mostra este vídeo, a lembrar a tragédia de Ys.
[resulta mais com o som forte]
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