sábado, 3 de março de 2018

Frio e neve literários (e não literais)


"literalmente" é adjectivo que sai a esmo nas reportagens TV. É barato. Neste post vai fazer, não literalmente, mas literariamente, muito frio e neve.

Claude Monet, Neve em Argenteuil

Ramos de árvores decorados com almofadas fofas, como se alguém as  tivesse batido para encher; no chão, lombas e bossas sob as quais se escondem arbustos rastejantes ou afloramentos de rocha; uma paisagem de gnomos agachados, encolhidos, comicamente disfarçados, parecendo saídos de um conto de fadas. Mas se havia algo de fantástico e divertido na vizinhança do caminho que com dificuldade percorríamos, eram as imponentes estátuas dos Alpes nevados, que nos vigiavam ao longe, e despertavam em nós sentimentos de sublime e de sagrado.
Thomas Mann, A Montanha Mágica

Parecem hesitantes e receosas de início, depois num jacto apressado uma breve rajada cai, como uma patrulha branca caindo em pára-quedas de um céu baixo em variadas texturas, unificando tudo. A Neve é branca e cinzenta, fragmentada e inteira, infinitamente diversa mas infinitamente repetitiva, macia e dura, congelada e derretida, estalando sob os pés e silenciosa. Mas é em prineiro lugar a reversão da multiplicidade numa coisa só. É substância, é quase a própria ideia de substância, que transforma a relva, a estrada, o campo de feno, jardim, pilha de lenha, Saab, bacia de rega, celeiro desabado, muro em pedra, numa só coisa branca.
Donald Hall, From Seasons at Eagle Pond

Será que a neve ama as árvores e os campos, visto que os beija com tal gentileza ? E depois aconchega-os, não é, com uma colcha branca; e talvez diga ‘durmam bem, meus queridos, até o Verão estar de volta.
Lewis Carroll, Alice's Adventures Through the Looking-Glass, 1871

Nevou toda a semana. Na rua, as rodas e os passos transitam insonoros, como se as tarefas da vida continuasssem secretamente sob uma pálida mas impenetrável cortina. Na quietude que cai não há céu nem terra, só a neve pairando ao vento, cobrindo de geada o vidro da janela, gelando os quartos, mortificando e silenciando a cidade.
Truman Capote, American Fantastic Tales: Terror and the Uncanny

Dust of snow

The way a crow
Shook down on me
The dust of snow
From a hemlock tree

 

Has given my heart
A change of mood
And saved some part
Of a day I had rued.”


                                           A maneira como um corvo
                                           sobre mim sacudiu
                                           a poeira de neve
                                           do alto de um cedro

                                           Deu ânimo novo
                                           ao meu coração
                                           e salvou boa parte
                                           de um dia lastimoso
Robert Frost, 1923



1 comentário:

Fanático_Um disse...

Muito bonitos e bem apropriados para os dias que correm por essa Europa fora.