Vivo imerso em ruído, a poluição sonora é mais insidiosa e deprimente que a sujidade no ar ou na água. O ruído é obra do homem, claro, que só produz silêncio como rara excepção, nas catedrais e nas bibliotecas.
Imagino um planeta desabitado, pode ser há 500 000 ou daqui a 500 000 anos. Um silêncio quase absoluto, pontuado pelo canto das aves, o vento na folhagem ou a chuva que cai sobre o lago - que são formas sonoras de silêncio. Haverá ruído de longe a longe, um trovão, o ranger do glaciar na moreia, uma alcateia que uiva. São só curtos intervalos de som, nada desta permanente gritaria urbana, social, televisiva. Preciso de um silêncio assim, permanecente - ele virá um dia em definitivo, bem sei, mas preciso agora de viver com silêncio.
Calem-se, por favor. Encerrem o festival. Desliguem tudo, motores e écrans e campaínhas. Mozart só um pouquinho, de longe a longe, pianíssimo. Quero a Terra-mãe solteira de nós.
E não façam do silêncio uma forma arrogante e perniciosa de ruído, como fez John Cage com a 'obra' que quer fazer passar 4' 33'' de um nada fundamentalista como obra artística. Para lixo, já basta o barulho do dia-a-dia.
Um poema de Grace Wells:
In the Museum of Silence
For the full effect we encourage
you first hear its opposite -
in this room are the drawers of sound.
Highway traffic. The demands
of children. A rock festival.
A prison wing.
Through the double doors
you'll find the hush
that falls with snow.
Upstairs we have replicated
the British Library
and a Spanish cathedral.
And the exhibition progresses
you'll hear the different qualities
of silence, its range of depths.
Our archive has recordings
from across the globe:
Arctic quiet from Baffin, the scorched Sahara.
We gave samples from below the ocean
and from caves within the earth.
And from outer space.
Our final chamber is wired straight
to the Himalayas. We recommend
you lie downin there and listen.
Visitors can sign the guestbook
before they leave.
in Dark Mountain, vol. 6
3 comentários:
Gosto tanto de tudo isto, da ideia dos pequenos sons como formas de silêncio, do poema magnífico, que não conhecia.
E partilho a sua opinião, tanto acerca do John Cage, como do ruído (as minhas maiores irritações nesse campo são a paranóia obrigatória de ter "música" em todo o lado, e os putos com o telemóvel a debitar ruído - problemas de quem depende dos transportes públicos… ).
Espero que não se importe que partilhe consigo alguns excertos que juntei uma vez, a pensar no silêncio, neste caso na literatura.
"Achar uma palavra que faça do silêncio uma casa." (Espectáculo "O Pino do Verão", da companhia de teatro O Bando)
"There are then warm hollows grooved in the heart of the uproar, alcoves of silence where we can shelter under the wing of beauty." (The Waves - Virginia Woolf)
"Esta tarde vi gravuras japonesas com o Glassner. E de repente fiquei a saber: é assim que eu quero escrever. Com um espaço imenso à volta das palavras. Quereria escrever somente palavras organicamente inseridas num grande silêncio, daquelas cuja única utilidade é dominar o silêncio e rasgá-lo. (...) E há-de ser mais difícil de reproduzir e animar esse silêncio e essa mudez do que achar as palavras. O importante será a relação justa entre palavras e silêncio (...)"
(Etty Hillesum - Diário (1941-1943))
Belo comentário, Silvertree.
ÀS vezes até os poetas se cansam das aves, Sivertree. Há um poema de Robert Frost em que ele manda calar um pássaro:
A Minor Bird
I have wished a bird would fly away,
And not sing by my house all day;
Have clapped my hands at him from the door
When it seemed as if I could bear no more.
...
Só não gosto do silêncio quando é urgente falar - o silêncio da cobardia.
Depois de ler a sua tradução do poema de Grace Wells, num post recente(Março 2020), procurei o original e o Google mandou-me... para aqui! Que bom (re)descobrir.
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