A tournée de "In War And Peace", um recital barroco de Joyce DiDonato com a orquestra Il pomo d'Oro, vai já na 3ª rodada pela Europa e Américas; finalmente chegou a a Lisboa (muito depois de Oviedo, onde tentei ir vê-la mas foi-me impossível).
De longe o ponto alto da programação da Gulbenkian para 2018, cedo esgotou, como não podia deixar de ser. Já tudo foi dito sobre a produção e o canto de DiDonato, resta-me dar conta de que estive lá, foi sublime, inevitável e irrepetível - mas nem tudo me agradou, como também era de esperar.
Recebi logo de entrada um envelope assinado pela Joyce a dar conta da mensagem intencional que inspirou a récita - confrontar guerra e paz na arte musical, por um lado, e procurar saber caminhos de superar o caos ameaçador que, pensa ela, paira sobre o mundo. Para isso faz um inquérito, sim!, um inquérito a saber como cada um encontra espaços de paz e conforto nestes dias revoltos. A falar verdadade , boa parte da resposta dá-a ela própria, no concerto (com música!) e na mensagem transmitida no final.
Lá fui escrevendo qualquer coisa como - a escravatura ? acabou; as pestes e as pragas ? acabaram; os gulags e auschwitzs ? acabaram; portanto as três mais diabólicas maldições da humanidade foram ultrapassadas, e foi a Humanidade que as conseguiu debelar. Não será razão para confiar que mais maldições tenham também os dias contados ? O verdadeiro problema está em saber se há sempre novas maldições no horizonte à espera do momento próprio. Pelo menos, nos intervalos, que haja música, muita Música.
Iniciando com as terríveis "Scenes of horror, scenes of woe" da ópera Jephta de Händel, que nos pôs em contexto, Joyce começou de facto com o genial "Lamento de Dido" de Purcell, que nunca ninguém cantou melhor. O discreto mas muito requintado acompanhamento do Pomo d'Oro ajudou. Voltamos à angústia mais desesperada com Händel na ária de Agrippina, "Pensieri, voi mi tormentate". Joyce DiDonato tem uma expressão corporal de verdadeira actriz, e era mesmo chocante ouvir e ver a que ponto estava atormentada pelos pensamentos, a voz áspera correndo aos extremos da escala com um domínio inacreditável. Mas foi o final "Lascia ch'io pianga" que mais me arrebatou. Joyce cantou a ária deitada/sentada no chão do palco, com uma contenção, uma concentração, uma emoção de arrepiar. Não foi apenas "cantar uma ária", como num recital qualquer; foi todo um programa, teatro, canto, coreografia, música, iluminação... inesquecível.
A segunda parte, já sob o tema da paz, foi mais levezinha e bonita, no bom sentido. "Crystal Streams in Murmurs flowing" de Händel é muito bucólica, e o "Da Pacem, Domine" de Arvo Pärt surgiu como um interlúdio orquestral a introduzir uma paz interior, sobre um cenário projectado de uma capela na obscuridade por onde entram fragmentos da luz do sol; entretanto as (por vezes estranhas) projecções no écran de fundo foram substituídas pela vista dos jardins da Fundação através de vidro semi-transparente, um fundo de verdura a que já estamos habituados - mas nunca cansa. E com esse cenário tivemos o alegre dueto para canto e flauta "Augeletti, che cantate", Händel mais uma vez, e o celebratório "Dopo Notte" para nos levar a bom porto:
Dopo notte, atra e funesta,
splende in Ciel più vago il sole,
e di gioja empie la terra;
Mentre in orrida tempesta
il mio legno è quasi assorto,
giunge in porto, e'llido afferra.
Depois da noite, sombria e funesta
No céu resplandece mais vivo o Sol
E enche a Terra de alegria.
Enquanto numa horrível tempestade
O meu barco quase naufragou,
Entra agora no porto e acosta ao cais.
Seguiu-se o discurso socio-ético-politico de Joyce, e sempre tivemos um encore, um só, mas foi, imagine-se, a canção 'Morgen' de Strauss. Modernidade e intensa interioridade para um final perfeito.
Volta sempre, Joyce DiDonato. E já agora, vem ao Porto, vem à Casa da Música que é uma boa sala de concertos e sabe receber graças quase divinas como a tua.
-----------------------
Não gostei: da maquilhagem feia e gore que Joyce usou em todo o concerto; e de um bailarino que andou por lá a fazer umas "fosquinhas", como se diz na minha terra.
5 comentários:
Foi de facto o momento mais alto da temporada na Gulbenkian. Joyce DiDonato ao mais alto nível, programa muito bem escolhido e soberbamente interpretado. Também achei que o bailarino era dispensável.
Obrigado, Fanático_Um. Um dia havemos de nos encontrar nas FCG.... ou na CdM...
Só um comentário sem importância. Tanto quanto me lembro o fundo em vidro ficou a descoberto durante o Dopo notte. A seguir houve um encore que não identifico, o discurso e então o morgen de Strauss. Houve, portanto dois extra.
Fica combinado!
Entretanto, descobri este videozito da Joyce a ensaiar "Morgen":
https://youtu.be/TNjyC9AdR2g
Enjoy!
Enviar um comentário