sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Un Château en Suède: Trolle-Ljungby e Vittskövle


Baseado no livro de Françoise Sagan, "Um Castelo na Suécia" foi um filme de Roger Vadim, de 1963, com Monica Vitti, Françoise Hardi, Trintignant...


Era um caso deprimente de conflitos entre gente da aristocracia. Mas estes castelos suecos que vou referir nada têm a ver com o livro ou o filme. A Escócia, o País de Gales, o vale do Loire, as encostas do Reno, são conhecidos pela sua riqueza em castelos, medievais, renascentistas ou neo-góticos. Mas o reino da Suécia também foi muito produtivo em castelos, a maioria mais apalaçados do que bélicos, construídos sobretudo a partir do século XVI sob influência tardia da Renascença, no tijolo avermelhado com os pigmentos ferrosos das minas do norte. São às dezenas, uma imagem  marcante na paisagem rural do Sul do país - a Escânia (Skåneland), uma região que pertenceu ao reino da Dinamarca desde a administração Viking, com três Thing (parlamentos) a funcionar do séc. IX até finais do Renascimento, quando o rei Gustav Vasa empreendeu a construção do Estado sueco.

Depois, foram 12 (doze !) as guerras pelo domínio da Escânia, e só em 1660 a região foi definitivamente cedida à Suécia num tratado de Paz que a França apadrinhou. A população, contudo, em grande parte dinamarquesa, resistiu sempre ao domínio sueco, as confrontações duraram décadas, e foram precisas leis muito duras e selvajaria 'medieval' para obrigar os habitantes a submeter-se à língua, costumes e soberania sueca. Não era nada pacífica, a Escandinávia da Renascença, e a ocupação dinamarquesa foi mais sangrenta que a ocupação espanhola em Portugal.

Por essa altura da anexação da Escânia, a Suécia conseguiu expandir-se num vasto domínio territorial à volta do Báltico. Reinava Carlos X - foi a época de maior enriquecimento e progresso, que elevou o Reino a protagonista importante na Europa.
Um quase império que incluía a Finlândia, Wismar, Stralsund, Letónia e Estónia, e controlava o trafico no Báltico por Kalmar, Visby, Wismar, Riga.

Trolle-Ljungby Slott

O Trolle-Ljungby está situado 140 km a norte de Ystad, numa zona salpicada de lagos. Rodeado de um fosso de água, tem três alas que encerram um pátio aberto. A ala principal é de 1629, as outras duas posteriores - o período da poderosa e rica Grande Suécia.


Este castelo teve origens na Idade Média, contruído para uma família nobre dinamarquesa que governava as terras da região durante os séculos XIV e XV.


A edificação actual nasceu de grandes obras de reconstrução no séc XVII, durante o processo de reconquista da Escânia pela Suécia e as continuadas escaramuças que se lhe seguiram. Actualmente são donos os condes Trolle-Wachtmeister.


Sobre o canal, uma ponte em pedra foi construida em 1806.



No interior ainda existe mobília e decoração do castelo original, mas está quase todo em estilo Rococó e Neoclássico. O castelo inclui também uma capela do século XIII, com restauros e adições posteriores.


Vittskövle Slott

Situadao a sul de Åhus, num bosque de carvalho coberto de musgo perto da igreja de Vittskövle, este é um dos mais bem conservados castelos renascentistas. Compõe-se de quatro estruturas de três andares com duas torres levantadas em diagonal, tudo protegido à volta por um fosso profundo. É uma construção notável cujos trabalhos se prolongaram por 24 anos.


Foi construído por Jens Brahe no séc. XVI como bastião defensivo. Depois foi sendo propriedade de sucessivos herdeiros, até à sua aquisição por privados.


Das torres, é possível vigiar e proteger a tiro todas as estradas.


O parque e jardins datam do séc XVIII, e estão decorados com pavilhões e tendas turcas.



Irei em breve visitar a região, mas não estes dois castelos, muito fora de rota. Com sorte, talvez este outro, em Hjularöd:


domingo, 26 de agosto de 2018

Desafios arriscados para umas férias de aventura radical


Silly Season !

Inspirado de novo por Patrick Besson, vou publicar o post maluco deste Verão. É só um, e acaba.

Leio e vejo em várias revistas sugestões de viagens e férias que não são "turismo" - turismo é mau, feio, sujo e estúpido, como se sabe, desde que a Ryan iniciou o low cost. São aventuras radicais para gente que se quer "questionar a si própria", fazer "viagens interiores", "pôr-se à prova", saber "até onde é capaz de ir", etc.  Dão-me em geral vontade de rir, porque em vez de férias, boa vida, far niente, tudo o que sabe bem !, o que se propõe são desafios sacrificiais tenebrosos como voar em asa delta no Kilimanjaro ou ir ao Tibet de bicicleta, conviver com tubarões numa fossa oceânica ou um mês entre os mongóis numa tenda nas areias do Gobi.

Nesse espírito radical, Besson dá algumas ideias engraçadas, como sejam:

- Fazer rodeo sobre uma vaca sagrada num bairro popular de Bombaim.

- Rodar em volta da Kaaba, em Meca, no sentido dos ponteiros do relógio, enquanto se come uma bifana.

- Dançar seminu num gay pride em Teerão.

- Cantar o hino da Arménia empunhando a bandeira curda frente ao palácio de Erdogan.

Exemplos de humor deliciosamente xenófobo. Mas para compensar algumas sugestões minhas na Europa:

- Em Sochi, dizer-se sobrevivente inglês do MH17,  ou negociante de Novitchok.

- Estacionar o carro num pátio junto à moradia de um velho escocês.

- Atravessar uma rua em diagonal ou zig zag, ao telemóvel, fora da passadeira, em Helsínquia.

- De barba longa e vestindo um espesso colete, estender o tapete e ajoelhar gritando Alá em Lourdes.

-  Num café de Atenas, dar vivas ao Eurogrupo com um pin de bandeira portuguesa.


Chega. Boas férias, se for caso disso.



quarta-feira, 22 de agosto de 2018

O Eucalipto, segundo Julio Verne: nem para dar sombra serve.


Andam a lançar confusão sobre a floresta e os perigos de incêndio, como convém, quer aos poderes (que só assumem o que fazem  bem, nunca o que fazem mal que é quase tudo), quer à indústria do papel, que sendo extremamenre poluente é tratada como uma "jóia" a preservar - pelos mesmos que nos impingem a porcaria dos automóveis eléctricos e querem acabar com os eficientes motores a gasolina. Porque não carregam o papel de impostos como fazem nos combustíveis?

Irrita-me ter de alinhar com o discurso de esquerda radical nisto, mas bosque de eucalipto é CRIME. Claro que quem atiça o fogo são os humanos e as trovoadas, mas ele propaga-se muito mais facilmente em terrenos secos, madeira seca mas resinosa, cascas e folhagem seca no chão, que caracteriza os eucaliptais. Outra ajuda vem da falta de densidade do bosque, que facilita correntes de ar projectando as chamas, e pela altura, que leva mais longe essas projecções. Outras florestas mais fechadas restrinjem melhor o fogo a uma área delimitada.

Já em 1868 Jules Verne sabia muito bem dos problemas da floresta de eucalipto: descreve, em Os Filhos do Capitão Grant, o espanto dos europeus que atravessam pela primeira vez uma floresta de eucaliptos na Austrália. É sembre bom ler Verne, mas neste caso vale também pela descrição didáctica que faz sobre a orientação das folhas e como ela facilita a secagem do solo. Não sei nada disto, claro, mas sei distinguir quando os nossos "especialistas" - que os há para todos os gostos - inventam e aldrabam.

No livro, uma caravana de exploradores atravessa a floresta meridional da Austrália. Primeiro o original, depois traduzo.


« Ce fut un cri d’admiration à la vue des eucalyptus hauts de deux cents pieds, dont l’écorce fongueuse mesurait jusqu’à cinq pouces d’épaisseur. Les troncs, de vingt pieds de tour, sillonnés par les baves d’une résine odorante, s’élevaient à cent cinquante pieds au-dessus du sol. Pas une branche, pas un rameau, pas une pousse capricieuse, pas un nœud même n’altérait leur profil. Ils ne seraient pas sortis plus lisses de la main du tourneur. C’étaient autant de colonnes exactement calibrées qui se comptaient par centaines. Elles s’épanouissaient à une excessive hauteur en chapiteaux de branches contournées et alternes ; à l’aisselle de ces feuilles pendaient des fleurs solitaires dont le calice figurait une urne renversée.

Sous ce plafond toujours vert, l’air circulait librement ; une incessante ventilation buvait l’humidité du sol ; les chevaux, les troupeaux de bœufs, les chariots pouvaient passer à l’aise entre ces arbres largement espacés et aménagés comme les jalons d’un taillis en coupe. Ce n’était là ni le bois à bouquets pressés et obstrués de ronces, ni la forêt vierge barricadée de troncs abattus et tendue de lianes inextricables, où, seuls, le fer et le feu peuvent frayer la route aux pionniers. Un tapis d’herbe au pied des arbres, une nappe de verdure à leur sommet, de longues perspectives de piliers hardis, peu d’ombre, peu de fraîcheur en somme, une clarté spéciale et semblable aux lueurs qui filtrent à travers un mince tissu, des reflets réguliers, des miroitements nets sur le sol, tout cet ensemble constituait un spectacle bizarre et riche en effets neufs. La forêt du continent océanien ne rappelle en aucune façon les forêts du nouveau monde, et l’eucalyptus, le « Tara » des aborigènes, rangé dans cette famille des myrtes dont les différentes espèces peuvent à peine s’énumérer, est l’arbre par excellence de la flore australienne.

Si l’ombre n’est pas épaisse ni l’obscurité profonde sous ces dômes de verdure, cela tient à ce que les arbres présentent une anomalie curieuse dans la disposition de leurs feuilles. Aucune n’offre sa face au soleil, mais bien sa tranche acérée. L’œil n’aperçoit que des profils dans ce singulier feuillage. Aussi, les rayons du soleil glissent-ils jusqu’à terre, comme s’ils passaient entre les lames relevées d’une persienne.

Chacun fit cette remarque et parut surpris. Pourquoi cette disposition particulière ? Cette question s’adressait naturellement à Paganel. Il répondit en homme que rien n’embarrasse.

« Ce qui m’étonne ici, dit-il, ce n’est pas la bizarrerie de la nature ; la nature sait ce qu’elle fait, mais les botanistes ne savent pas toujours ce qu’ils disent. La nature ne s’est pas trompée en donnant à ces arbres ce feuillage spécial, mais les hommes se sont fourvoyés en les appelant des « eucalyptus ».

— Que veut dire ce mot ? demanda Mary Grant.

— Il vient de ευ καλύπτω, et signifie "je couvre bien" *. On a eu soin de commettre l’erreur en grec afin qu’elle fût moins sensible, mais il est évident que l’eucalyptus couvre mal.

— Accordé, mon cher Paganel, répondit Glenarvan, et maintenant, apprenez-nous pourquoi les feuilles poussent ainsi.

— Par une raison purement physique, mes amis, répondit Paganel, et que vous comprendrez sans peine. Dans cette contrée où l’air est sec, où les pluies sont rares, où le sol est desséché, les arbres n’ont besoin ni de vent ni de soleil. L’humidité manquant, la sève manque aussi. De là ces feuilles étroites qui cherchent à se défendre elles-mêmes contre le jour et à se préserver d’une trop grande évaporation. Voilà pourquoi elles se présentent de profil et non de face à l’action des rayons solaires. Il n’y a rien de plus intelligent qu’une feuille. »



Soou um grito de admiração à vista dos eucaliptos de duzentos pés de altura cuja casca fungosa chegava a medir cinco polegadas de espessura. Os troncos de vinte pés de circunferência, sulcados pelas secreções de uma resina odorífera, elevavam-se a cento e cinquenta pés acima do solo. Nem um ramo, pequeno ou grande, nem um rebento caprichoso, nem um nó sequer lhes alterava o perfil. Das mãos de um torneiro não sairiam mais lisos. Eram outras tantas colunas precisamente calibradas, que se contavam às centenas. A uma altura excessiva, expandiam-se em capitéis de ramos contornados e alternos, da axila dessas folhas pendiam flores solitárias cujo cálice figurava uma urna as avessas.

Sob este dossel sempre verde, o ar circulava livremente; uma ventilação incessante aspirava a humidade do solo; os cavalos, as manadas de bois, os carros, podiam passar à vontade entre estas árvores espaçadas e decoradas como marcos numa floresta em talhadia. Não era nem o bosque de arvoredo muito junto e obstruído de silvados, nem a floresta virgem atravessada de troncos caídos e tecida por inextricável rede de lianas, onde só o ferro e o fogo podem abrir caminho aos pioneiros. Um tapete de erva ao pé do tronco das árvores, um toldo de verdura no topo, longas perspectivas de pilares arrojados, pouca sombra, pouca frescura em suma, uma claridade especial e semelhante à luminosidade que se filtra através de um tecido ralo, reflexos regulares, espelhamentos nítidos sobre o solo, todo este conjunto constituía um espectáculo bizarro e rico em efeitos novos. A floresta do continente oceânico não se parecia de modo algum com as florestas do novo mundo, e o eucalipto, "Tara" para os aborígenes, classificada na família dos mirtos (Myrtaceae), cujas diferentes espécies são difíceis de enumerar, é a árvore por excelência da flora australiana.

Se a sombra não é densa nem a obscuridade profunda sob esses domos de verdura, isso resulta de as árvores apresentarem uma anomalia curiosa na disposição das suas folhas. Nenhuma oferece a face ao Sol, mas o seu perfil acerado. A vista não apercebe senão finos perfis nesta singular folhagem. E por isso os raios de Sol deslizam até ao solo como se passassem entre as lâminas abertas de uma persiana.

Todos fizeram esta observação e pareceram surpreendidos. Porquê esta disposição particular ? Esta questão dirigia-se naturalmente a Paganel, o geógrafo da expedição. Ele respondeu como homem a quem nada embaraça:

- O que me espanta aqui, não é o capricho da natureza; a natureza sabe o que faz, mas os botânicos nem sempre sabem o que dizem. A natureza não se enganou dando a estas árvores uma folhagem especial, os homens é que se enganaram ao chamar-lhes "eucalipto". 

- Que quer dizer essa palavra ? - perguntou Mary Grant.

- Vem do grego ευ καλύπτω, e significa (eu)"cubro bem". O erro é cometido em grego e passa despercebido, mas é evidente que o eucalipto cobre mal.

- Concordo, caro Paganel, respondeu Glenarvan, e agora explique-nos porque crescem assim as folhas. 

- Por uma razão puramente física, meus amigos - respondeu Paganel -, e fácil de perceber. Nesta região de ar seco, de chuvas raras, onde o solo está ressequido, as árvores não precisam de vento nem de sol. Faltando a humidade, falta também a seiva. Daí estas folhas estreitas, que procuram defender-se da luz solar e proteger-se da evaporação excessiva. Eis porque se apresentam de perfil e não de face à acção dos raios solares. Nada mais inteligente que uma folha.»

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E nada menos inteligente que a criatura humana que acha uma árvore como esta adaptada ou adequada ao nosso clima, aos nossos solos.


sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Viena, melhor cidade do mundo ? Natürlich !


Sim, se não fosse Viena era Zurique. Mas Viena é mais bonita, plana, com um serviço de transportes que é um primor - e dispensa carros - , ruas pedonais, uma imensa oferta de museus e casas históricas, o gosto pelo café e pela esplanada, e sobretudo uma arquitectura de ruas e praças que torna o espaço urbano um prazer (apesar de alguns atentados modernos a destoar) e uma programação cultural soberba de concertos, exposições, ópera, bailado.

Roma - Viena - Estocolmo é a minha linha de Europa perfeita, superior. Uma linha norte-sul que percorre o mais genuíno e nobre coração europeu - o que nunca teve vocação atlântica, nunca partiu para fora de si à procura de novos mundos nem criou colónias, não "descobriu" outros mas fez com que outros viessem para cá descobrir-nos. De Roma a Estocolmo vai uma enorme diferença cultural e histórica, mas estão unidas no centro de irradiação que é Viena e ligam os dois mares europeus por excelência - o Mediterrâneo de Veneza e o Báltico de Liga Anseática. Duas civilizações diferentes - a latina e a nórdica - que se encontram a meio do caminho.

Acontece que estive recentemente em Viena, e raramente me senti tão bem - confortável, seguro, bem servido, cidadão pleno - noutra cidade grande europeia. Gemütlichkeit: aconchego, gentileza, bem estar. O estado de limpeza e conservação das ruas e espaços públicos até impressiona. Não há graffitis, deo gratias, nem cantos mal-cheirosos do binge drinking da noite passada; pelo contrário, é permitido fumar em muitos locais. As regras são respeitadas porque fazem sentido. Não há ruído de tráfico nem poluição. Eléctricos e pequenos autocarros silenciosos fazem as ligações dentro do centro e com a periferia. Caminhando, a vista tem contentamentos vários - esquinas, torres, fachadas, telhados, fontes, estátuas, portais, praças. À hora certa, sem turistas, os cafés são, como disse Steiner, o sítio onde se respira Europa.

Viena são ruas e praças por onde caminhar ou sentar.




Na Innere Stadt, as ruas encaminham para Igrejas...


Torres e cúpulas...

Fontes e estátuas...

Como uma das Cidades Invisíveis de Italo Calvino.

Fora e dentro.

O Templo da Música...

E a Jugendstil.


Viena é uma cidade de Cafés. Nisso é como Itália.


Gemütlichkeit, a Dolce Vita vienense. Que nada a venha estragar.

Kaffee mit Glas Wasser serviert wirt, sempre em tabuleiro cromado.

 Wings over Vienna.

 Viena é cidade de Museus...

De Klimt...

E cidade de Arquitectura. A fila é para o Requiem de Mozart na Karlskirche. Viena é Música.


E Viena é liberdade artistica.

Varanda da Europa, esta sim, a única.

E mais, e mais...

A famosa nº 2, uma linha de superfície perfeita pela Ringstrasse.

E o menu mais típico. Nem é muito caro.


Tenho muito orgulho na minha Europa, sem perdoar barbaridades passadas, integrando-as na trágica fatalidade humana. Mas se tivesse de escolher um país onde me orgulhasse de ter nascido, era Itália, Áustria ou Suécia.

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A seguir vou visitar Skåne (Scania). Lund será o meu poiso.

domingo, 12 de agosto de 2018

Despertar: ¡Ah, si en esa mañana hubiera olvido!


Esta semana, tenho despertado à beira-mar, mas face a nascente. Pela janela coa-se a luz da manhã. Sabe-me a férias, não sei porquê, não as tenho ou tenho-as em permanência.


Despertar lentamente, ainda a viver algum sonho estranho e sem saber bem onde estou. Os sons da rua dão essa informação melhor do que a vista: crianças, pássaros, portas a bater, a camioneta. As sombras que se projectam no tecto, percorrendo em diagonal e descendo a parede...

Veio-me esta ideia de poemas de despertar. Encontrei logo J. L. Borges, claro, primeiro entre os primeiros.

El despertar

Entra la luz y asciendo torpemente
de los sueños al sueño compartido
y las cosas recobran su debido
y esperado lugar y en el presente
converge abrumador y vasto el vago
ayer: las seculares migraciones
del pájaro y del hombre, las legiones
que el hierro destruyó: Roma y Cartago.
Vuelve también mi cotidiana historia:
mi voz, mi rostro, mi temor, mi suerte.
¡Ah, si aquel otro despertar la muerte
me deparara un tiempo sin memoria
de mi nombre y de todo lo que he sido!
¡Ah, si en esa mañana hubiera olvido!


"Vuelve también mi cotidiana historia: / mi voz, mi rostro, mi temor, mi suerte."  Antes despertar noutro eu, para outra vida...


Fernando Pessoa visita os mesmos sonhos, sofre os mesmos despertares de Borges.

Durmo. Se Sonho, ao Despertar não Sei
Que coisas eu sonhei.
Durmo. Se durmo sem sonhar, desperto
Para um espaço aberto
Que não conheço, pois que despertei
Para o que inda não sei.
Melhor é nem sonhar nem não sonhar
E nunca despertar.


Fernando Pessoa, "Cancioneiro"

Estou longe de ter tão desventurosos despertares, mas reconheço-os, fazem parte de uma humanidade tormentosa que teve o seu auge no séc. XX. A realidade para que acordo parece menos ensombrada, talvez por causa da luminosidade da praia, mas não esqueço que na maior parte desse mundo o despertar é sofrido, acorda-se para as trevas ou para o abismo.

Blaise Cendrars, poeta maldito, é espantosamente quem mais está perto de mim nesta travessia. Fugindo da pesada e depressiva Paris, iria viajar para o Novo Mundo no melhor momento do século, em 1924, e havia isso - esperança, expectativa.

Blaise Cendrars, Réveil

Je dors toujours les fenêtres ouvertes
J’ai dormi comme un homme seul
Les sirènes à vapeur et à air comprimé ne m’ont pas trop réveillé

Ce matin je me penche par la fenêtre
Je vois

Le ciel
La mer
La gare maritime par laquelle j'arrivais de New York en

 1911
La baraque de pilotage
Et
À gauche
Des fumées des cheminées des grues des lampes à arc à

contre-jour
Le premier tram grelotte dans l'aube glaciale
Moi j'ai trop chaud
Adieu Paris
Bonjour soleil


Como despertar bem disposto num mundo sem expectativas ?
- ah, se nessa manhã houvesse olvido !

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

'Al fresco' - a bonita colecção da Archiv/DG com capas de Matisse


O título não pode ser mais convidativo neste Agosto, mas os nove CDs 'Al Fresco' em edição cartonada da Archiv são tanto uma preciosidade histórica de coleccionador como uma belíssimo conjunto de gravações que sabe bem voltar a ouvir, com a frescura das interpretações inovadoras de finais do séc. XX em instrumentos de época. As capas de Matisse fazem parte da magia.

O Dixit Dominus de Handel por Simon Preston, por exemplo, com as magníficas vozes de Arleen Auger e Lynne Dawson:
Matisse, La Négresse

Ou o Salve Regina de Hasse pela Musica Antiqua Köln, de Reinhard Goebel, com as saudosas Bernarda Fink e Barbara Bonney:
Matisse, Vigne

São clássicos que se mantêm como referência. E que dizer das aquáticas Sonatas de Scarlatti com Trevor Pinnock ao cravo ?
Matisse, Acanthus

Um dos melhores é a Gloria de Vivaldi pelo English Concert do mesmo Pinnock e Nancy Argenta a cantar como uma sereia de cristal:
Matisse, Nuit de Noël

Também se ouve bem Pierre Fournier nas Suites para Violoncelo de Bach, neste caso uma leitura 'antiquada', quase romantizada.
Matisse, Nu bleu debout

Menos conseguidos, os quartetos de piano com o radical Malcom Bilson na feia pianola de época, um exagero historicista:
Matisse, Coquelicots

Canções a capella de Guillaume de Machaut (séc. XIV), pelo Orlando Consort:
Matisse, La pérruche et la sirène

Amostras para audição:

Prelúdio da suite nº 1 de Bach por Fournier:

Gloria de Vivaldi pelo English Concert: