domingo, 21 de julho de 2019

A igreja de madeira de Hopperstad, 61º 05' N, o mais a Norte que já estive


Foi já em 1998, durante uma estada em Bergen, que atingi a minha latitude máxima de 61º N ao visitar a igreja medieval de Hopperstad, uma das mais belas igrejas Viking de madeira (Stave Kirken) da Noruega. Talvez preferisse ir a Borgund, mas era mais longe.


Parti de Bergen por uma daquelas estradas que nunca mais acabam, fiado na suposta boa sinalização e na longa duração da luz do dia - o sol punha-se perto das 23h. Os quilómetros rendem, as horas passam (o previsto eram 3 horas !), e a sinalização deixa muitas dúvidas. Vikøyri, será que conseguia lá chegar?


Conforma a tarde avançava, e depois de umas enormes, negras e rijas cerejas compradas à berma da estrada (nada caras), a luz começou a alternar entre as cores douradas e o cinzento de cada vez mais nebulosidade. Estava mesmo a ver que ia ter chuva à chegada, uma das perspectivas que me deixam mais irritado. Luz e sol quando não é preciso, e no sítio de destino sobra e chuva.

Pouco antes de Myrkdalen, eis que surgem asTvindefossen (ou Trollafossen). Foi uma revelação formidável - depois de uma curva vimos de repente a jorrar encosta abaixo esta cascata poderosa, de grande caudal, espumando na queda. Ficamos lá um pedaço a desfrutar do cenário, os olhos contentes da visão esplendorosa, a 60°43′ N - mas ainda hoje havia de chegar até aos 61 !


Depois de muitos mais quilómetros veio a maldita Serpentinveg, um daqueles zigzags montanha acima, mais adiante um túnel sem fim e mais curva-contracurva. Além disso a fome começou a apertar. Nada desde as cerejas, no carro só um pouco de chocolate. E ainda faltava muita estrada, Vikøyri era mesmo no fim do mundo - fica junto ao grandioso SogneFjord, felizmente do lado de cá, senão ainda tinha de esperar o ferry para atravessar. Soube depois que toda a região tem época alta durante os desportos de Inverno.


Era Agosto, mas a luminosidade coada já era quase ártica. A paisagem sempre verdejante adquiria uns tons estranhos, prenunciando chuvada, entre montes meio-ensolarados meio-sombrios, mas por fim lá apareceu o letreiro de Vikøyri, e avistei a igreja no alto de uma pequena elevação, sobre o fundo azul da água do fiorde. Quanto mais me aproximava, mais feérico e irreal se tornava o cenário. Não se via ninguém, e quando saímos do carro fazia um ventinho seco e frio, um silêncio inesperado, quase mágico - um silêncio diferente, mais intenso, vasto e cósmico, onde só se ouvia o silvar do vento.


Estava a 61°05′16″N, 06°34′46″E, e foi o mais longe que alguma vez subi para Norte. A Hopperstad Stavekirje (= 'igreja de madeira') estava um pouco acima de nós, numa espécie de colina. Negra, negra de madeira que parecia carvão, no contra-luz do sol quase poente, recortando 'dragões' vikings e agulhas no céu nórdico. O momento único, irrepetível e definitivo, exigia aproveitar ao máximo o sítio e o objecto de Arte e História. Emocionante.


Foi por trás que nos aproximamos, subindo o relvado. Afinal tivemos sorte, o adiantado da hora já tinha levado os visitantes embora, além de nós só havia outro casal. O assobiar do vento, arrepiante, parecia parte do cenário; era também ele que levava e trazia nuvens e abertas de sol. A Hopperstad Stavekirkje era... de outro mundo. Espantosa, misteriosa, assustadora. Dava vertigens quase, vertigens de espaço e de tempo.


Conforme a incidência da luz, íamos notando que o negro não era assim tão negro, tinha tonalidades. Os dragões, aliás indistintos das serpentes na mitologia nórdica, eram uma tentação fotográfica.

Sendo o dragão/serpente símbolo de poderio e ameaça, não percebo ainda a razão porque decoram igrejas cristãs; talvez os nórdicos convertidos quisessem apenas simbolizar a coexistência e harmonia entre duas culturas.


A frente da igreja, desajeitada, era difícil de abarcar numa só fotografia.


Vamos então aos dados históricos. A data atribuída à construção era circa 1130, neste mesmo local, até que novos dados fizeram recuar a avaliação para 1034 -1116, portanto a mais antiga das igrejas de madeira nórdicas existentes. Ainda não havia Portugal, e os Vikings estavam no processo de se cristianizar. Nem prescindiam dos dragões!

A igreja estava abandonada e em perigo de ruína no século XIX; em 1880 grandes obras de restauro permitiram recuperar o que agora se vê. Durante os trabalhos descobriu-se que algumas obras de ampliação foram executadas nos séc XVII e XVIII, com novas pinturas. Elementos de todas as épocas - românico medieval, influências europeias renascentistas - foram encontradas.

A entrada do lado poente é a mais bem decorada, com colunas e molduras finamente esculpidas em madeira com motivos vegetais e animais, acho eu, serpentes talvez.


É de nave tripla semelhante ao modelo estabelecido pela igreja de Borgund, a mais prestigiada. O interior é bastante escuro, as traves são de pinho.




Um dos pormenores mais invulgares é a galeria coberta exterior à volta da igreja, como um logradouro da paisagem ou um abrigo de espera numa região onde a chuva é frequente. Mas, com sorte,  conseguimos escapar-lhe !








O fim da tarde adiantava-se demasiado, a povoação deserta, tudo fechado, tínhamos três horas de regresso e, ah, uma fome...

Assim foi a máxima incursão setentrional; em segundo lugar fica Uppsala, a 59º, e depois Cullen, a 57º 41' N, na Escócia; e já agora, o mais a sul foram Heraklion ou Rodes, pelos 35º N. Toda uma vida entre os 35º e os 61º N !


3 comentários:

SilverTree disse...

Que relato maravilhoso, obrigada por partilhar! (E que vontade de rumar a norte...)

Um abraço.

Mário R. Gonçalves disse...

Silvertree, obrigado pelo feedback, sabe tão bem ;)

Fanático_Um disse...

Fantástica descrição e imagens de cortar a respiração. Deve ter sido uma experiência inesquecível, apesar da longa viajem de carro. Obrigado por mais um texto único.