' Summerland ' é um filme bonito, evocativo, sensível, bem narrado; infelizmente terá vida curta, pois não segue o padrão main stream socio-catastrófico-belicista.
Comovente e mágico, Summerland transmite o melhor da vida, o que nos faz falta nestes tempos de angustiada desesperança. Uma nuance de romantismo quando regressa ao passado da relação afectiva entre as protagonistas, um realismo lúcido no presente, que é o dos ataques aéreos alemães contra Londres nos anos 40.
Alice e Frank fascinados pela Fata Morgana, a "ilha no céu" da teosofia.
A história decorre principalmente numa aldeia da costa em Kent, perto das falésias brancas das Seven Sisters; Alice Lamb mora numa casinha sobre as dunas, a escrever ensaios sobre o folclore medieval e o fenómeno de Fata Morgana que essa tradição referia avistar-se do topo da falésia na forma de uma "ilha no céu", como uma formação fantástica a encimar as nuvens,
pairando acima do mar. Um escape à realidade da guerra, mas Alice orienta-se pela perspectiva científica, quer descobrir a explicação racional para os factos.
Embrenhada na investigação e na escrita, Alice enxota todos os que a importunam, mesmo as crianças numa campanha de apoio às vítimas. Por isso suspeitam dela, fechada e antipática, como sendo espia alemã, ou mesmo ... bruxa.
Até que lhe bate à porta Frank, um rapaz adolescente que foi evacuado de Londres e precisa de uma 'família' de acolhimento, que calhou ser ela, Alice. Depois das resistências iniciais, Frank acaba por ficar. Com o tempo, nasce uma cumplicidade em torno da investigação sobre o "castelo no céu" e os mitos da vida depois da morte. E para não estragar mais a quem for ver, fico por aqui.
A relação afectiva entre Alice e Vera é tratada com contenção e elegância exemplares.
Filmado em cores suaves, que reforçam o lado mágico, Summerland consegue conciliar o devaneio com a realidade num mundo de melancolia em que milagres podem acontecer e vir iluminar vidas sombrias e solitárias.
Uma história bem contada, bom gosto na realização plástica, ah, e é, sim, um filme muito britânico.
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Porquê 'Summerland' ? Escrito e realizado por Jessica Swale, o filme vai buscar o título ao mito pagão e teosofista de um lugar nos céus onde habitam os antepassados, que manipulam as nuvens para comunicar com os vivos - a tal Fata Morgana do castelo numa ilha de nuvem.
[Textos vários do Guardian, Variety, LA Times ...]
Mais adiante no livro Grove de Esther Kinsky, a autora faz-se à estrada pela região a sul de Roma, em direcção a Palestrina. Descreve a cidade com a mesma sombria melancolia, sublinhando o abandono e a decadência. Vejamos.
Na frente da cidade, os três terraços que ainda restam dos seis originais de um santuário Romano, e o Palácio renascentista edificado no topo em torno do anfiteatro.
Começou por uma cidadela Etrusca no alto do monte, desde o séc VII A.C., depois conquistada pelos Romanos ca. 338 A.C.. Foi então um santuário famoso pelo seu Oráculo, a deusa Fortuna Primigenia, do qual se conservam os terraços baixos e paredes de engenhosa construção, que terá terminado no séc. II AC. A cidade renascentista foi construída sobre a Praeneste dos Romanos, de que ainda se vêm alguns pavimentos de rua.
A Palestrina actual tem cerca de 20 000 habitantes. Tal como Olevano, trepa pela encosta, neste caso de um dos montes Prenestini, mas de forma diferente, interrupta: o burgo pára a meia encosta e lá no topo há a mais casario onde era a acrópole antiga, agora Castel San Pietro.
Entrada pela muralha na cidade alta.
Durante o Renascimento Palestrina atingiu algum protagonismo, como mostra o Palazzo Colonna-Barberini. Reconstruído pela poderosa família Colonna por volta de 1460, sobre duas torres do séc. XII, aproveitou o anfiteatro do santuário e adicionou um poço; após várias demolições e restauros, foi adquirido pela família Barberini em 1630, a quem se deve o actual edifício, terminado só em 1640.
Palazzo Colonna - Barberini.
É um edíficio renascentista, onde agora está instalado o 'Museo Archeologico Nazionale di Palestrina'. Tem uma sala dedicada ao “Mosaico do Nilo”, e exibe exemplares de Cistae, os famosos cofres etruscos com esculturas sobre a tampa, que mostro mais adiante.
O poço quatrocentista de Barberini, localizado aproximadamente onde seria o antigo poço sagrado de Fortuna Primigenia.
Do anfiteatro tem-se uma ampla vista sobre a cidade nova e as planícies do Lazio.
Do antigo Forum resta pouca coisa:
Vestígio do 2º terraço; o poço sagrado estava mais acima, no 4º terraço.
Também a Porta do Sol, construída em 1642, foi obra dos Barberini. É o ex-libris actual da cidade.
A Piazza della Regina é o centro cívico do séc. XVII.
Estátua de Palestrina (1921)
Passeando pelas vielas da meia encosta, damos com a casa natal de Giovanni Pierluigi da Palestrina (1525-1594), importante compositor de música sacra do Renascimento.
Casa natal e Museu
" Palestrina era uma cidade de gatos. Depois de uma violenta chuvada as ruas ficaram vazias excepto gatos, brancos, cor de areia, malhados, por todas as esquinas, entradas e escadarias, em abrigos precários na beira de relvados. Alguns eram tranquilos e expectantes, outros ansiosos à espreita, mas não ariscos ou esqueléticos como os da Europa de Leste - mas antes como astutos guardiões de lugares secretos, receosos de ser descobertos, apanhados no esconderijo."
Via dei Merli, com gato prenestino
Tal como em Otranto, íngremes escadarias em vez de ruas, e a dificuldade de vida que daí resulta.
Assim, apesar do museu e da casa de PierLuigi, a cidade aparenta mais pobreza e abandono que Olevano.
Museu Arqueológico Nacional de Palestrina
O edifício do Palácio Colonna-Barberini dedica as salas maiores e corredores dos dois andares a uma pequena colecção arqueológica das épocas Etrusca, Romana e Renascentista. Vale bem a pena, e já que nunca lá irei, aqui ficam as melhores imagens que consegui.
Sala do piso principal
Sala do piso superior
O mais conhecido é talvez o Mosaico do Nilo, um piso de mosaico helenístico (ca. 100 A.C.) que descreve a passagem do rio Nilo entre a Etiópia e o Mediterrâneo. Dois detalhes:
O fascínio e o espanto dos Romanos pela vida selvagem no Nilo, eles que só conheciam o modesto Tibre.
Uma jóia de II - III D.C.
é um colar de ouro incrustado de 7 safiras:
Segundo estudos de especialistas, as safiras provêm da longínqua Ásia - umas do Tailândia, outras do Sri Lanka ou Birmânia.
Mas para mim o mais interessante são
Os cofres (cistae) latino-etruscos de Praeneste
Na necróple etrusca do monte Praenestini foram encontradas vários cofres metálicos portáteis (cobre, por vezes bronze) cilíndricos, com tampa sobre a qual há pequenas esculturas humanas. Devem ser objectos funerários, datados dos séc. IV - III AC, quando a população etrusca adquiriu cidadania romana :
Uma das peças mais raras é uma cista quadrangular em vez de redonda, e com referência à consulta do Oráculo prenestino. Possivelmente terá a forma da arca que continha as ‘sortes’
da deusa Fortuna, que um jovem extrai do poço.
Data do séc. III A.C., a seguir à conquista Romana, certamente com o Oráculo ainda não acabado.
Os cofres são também designados Cistae Praenestine, classificados como etrusco-itálicos; são notáveis as pegas ricamente esculpidas, fundidas pelos pés no metal da tampa. A superfície curva lateral está finamente cinzelada.
Três guerreiros de armadura.
Houve desde o século XIX uma corrida ao tesouro das Cistae, com alguma vandalização dos terrenos do alto do monte, que levou à descoberta de 118 objectos ! Três estão no MET de Nova Iorque, muitos em Villa Giulia (Roma), mais alguns no Museu Arqueológico de Palestrina. A ganância dos antiquários deu também origem a muitas falsificações.
Um dos mais belos exemplares, Cista Ficoroni, em Villa Giulia, Roma.
Para que serviam estes cofres, está ainda por esclarecer. Sabe-se que eram ofertas muito valiosas.
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Bem, só se confirma que Itália 'de tout et partout' é um território de tesouros. Nunca irei a Olevano nem a Palestrina, mas bem iria se pudesse; testemunhos da História assim silenciosos, quase secretos, podem ser mais emocionantes que as rotas mais visitadas. Esther Kinsky não as descreve, apenas as vê â sua maneira, com os óculos escuros da solidão recente. Estou-lhe grato por mas ter revelado.
Termino com PierLuigi Palestrina, pelos King's Singers:
Acabei há pouco de ler 'Grove', de Esther Kinsky. Não posso dizer que seja um grande livro, Kinsky não me convenceu com o seu acumular de memórias do pai e de descrições deprimentes de Itália.
Sucede que Itália resiste a descrições deprimentes. Ao ler as vivências da autora por Olevano e Palestrina, na comunidade de Roma, fiquei curioso e desconfiado: fui ver, e as imagens desmentem-na completamente. São vilas de encosta, soalheiras e agradáveis, respiram pedra e História, estão certamente desfeadas pela expansão moderna no sopé mas o núcleo antigo, que sobe íngreme em vielas e ladeiras, mantém a atmosfera simpática de aldeamento modesto do interior semelhante a aldeias portuguesas como Piodão ou Belmonte. Essa pobreza que no passado marcou a população do sul de Itália é agora atractiva para citadinos e turistas em busca da autenticidade e do sossego da vida rural, o que se reflecte tanto em melhorias dos serviços e do espaço urbano como no mau gosto do caos arquitectónico demasiado presente. Mas não é dominante a triste, pesada, nevoenta melancolia e quase miserável economia de sobrevivência (árabes, africanos) que Kinsky descreve - e que deve ser projecção do seu estado de mágoa e luto mental.
Serviu a leitura para imaginar mais uma viagem virtual (e literária) por Itália: vamos então em duas etapas visitar Olevano e Palestrina, no Lácio, a sul de Roma, com alguns extractos do livro.
Olevano
"Na minha primeira manhã em Olevano fazia sol e um vento suave agitava as folhas envelhecidas das palmeiras que me tapavam a vista da planície na base do monte. Um sino tocava os quartos de hora. Outro sino, mais estridente, respondia um minuto depois, como se precisasse do intervalo para confirmar as horas."
Burgo vitícola em pedra, contruído sobre uma colina - o monte Celeste -, a sua parte mais antiga ocupa o cimo, e o casario desce a encosta como lava de granito, a torre de Santa Margherita a espreitar sobre os telhados.
No topo, o que resta do antigo Castelo: a Torre medieval e o palácio Colonna-Marcucci (à esquerda).
Os telhados amontoam-se à volta da Igreja e Praça San Rocco. As ruas e vielas são tortuosas e estreitas, as praças pequenas. Escadarias também são inevitáveis.
Igreja de San Rocco e a Piazza, centro cívico.
Piazza Umberto I, o centro a meia encosta
Entrata di Garibaldi.
"De manhã eu saía a pé para a aldeia, por uma rua diferente de cada vez. Quando pensava já conhecer todos os caminhos, uma escadaria revelava-se em qualquer ponto, ou um corredor íngreme, ou um arco a enquadrar a vista. (...) Via aldeões idosos com algumas compras esforçando os pés contra o declive. Deviam ter corações saudáveis, treinados nestas encostas, dia após dia, com ou sem cargas e sob o peso da humidade invernal. Alguns trepavam devagar mas com firmeza, enquanto outros pausavam, recuperavam com golfadas de ar - fosse o ar o que fosse aqui, na ausência de luz e de qualque aroma de vida. .. Nem sequer havia gatos a rondar por perto."
Via Garibaldi, com problemas de trânsito na geografia quase impossível da vila.
"Depois, um dia o sol brilhou de novo. Os idosos saíram das suas casas, sentaram-se ao sol no Piazzale Aldo Moro, a piscar os olhos com a claridade. Ainda estavam vivos. Derretiam como lagartos. Pequenos répteis cansados, em casacos de remendos, forrados de pêlo artifical. Os sapatos dos homens estavam desgastados num dos lados. O bâton formava crosta no canto dos lábios das senhoras. Passada uma hora ao sol já riam e discutiam, gesticulavam fazendo farfalhar as mangas de poliéster."
Palácio Colonna-Marcucci
Parte do Castelo de Olevano, do séc. XIII, conserva a estrutura original. É o único património de valor histórico de Olevano, foi propriedade das famílias Colonna, Borghese e, no séc XX, dos Marcucci, que o restauraram.
Alguns CDs vieram recentemente irromper boa música cá em casa, nas lamentáveis horas que passam. Entre eles,
A Scottish Chamber Orchestra dirigida por Andrew Manze bem podia ter conseguido aqui uma interpretação de referência, não fosse Piemontesi apenas competente, sem grande brilho; mesmo assim dá gosto ouvir e apreciar a direcção de Manze, viva e dinâmica.
Mozart, concerto p/ piano nº 26 - III
Francesco Piemontesi, dir. Andrew Manze
Não conhecia As Paixões de William Hayes, ouvi-las nesta interpretação da La Cetra foi uma boa surpresa, e o disco continua a rodar. Há muito em comum no estilo de composição de William Hayes, professor de música em Oxford, com o seu contemporâneo Handel. Hayes tem belíssimos concertos para orgão e orquestra, de que já qui falei; estas Passions são uma "ode em Música", composta em 1750, abordando um texto poético de William Collins sobre as 'paixões' humanas - medo, raiva, desespero, esperança, tristeza, ciúme, melancolia, alegria, razão - cantadas por uma bela jovem de nome 'Música'. No final a Razão vem conciliar as várias paixões, que devem conviver saudavelmente sendo a cada uma atribuída “a temper’d Part”, uma parte moderada.
La Cetra Willliam Hayes, The Passions - air (Evelyn Tubb)
Song: In vain each seeks (Reason)
Falei de Handele de concertos para órgão; este disco é dedicado à harpa, especialidade do dirigente e fundador da orquestra barroca de Seattle, Maxine Eilander. Nunca imaginei que em Seattle pudesse estar sediada uma boa orquestra barroca. 'Boa' é relativo, mas não está nada mal, e viva o harpista.
Handel´s Harp - transcrição doconcerto p/ órgão nº 6
Seattle Baroque Orchestra, Eilander (harpa), dir. Stephen Stubbs
E termino (não porque não houvesse mais ! ) com este CD muito suave e nocturno do piano de Víkingur Ólafsson, músico islandês muito apreciado em Nova Iorque e pela Gramophone. Aqui toca Rameau, muito ... islandicamente !
Que o planeta está sobrepovoado, é a sensação que tenho no dia a dia, e de que muitos se queixam: gente de mais. Sofre quem vive nas cidades da Europa, Estados Unidos, Índia, Ásia do Sudeste, Brasil. Sufoca-se.
Mas contra a sensação de sobre-população, város artigos da revista Nature mostram outra realidade: a Natureza ainda reina em cerca de metade das terras emersas do planeta: desertos, tundra, selva, pântanos, cadeias montanhosas, ainda são 50% da superfície sólida.
[Fonte, L'Express/Nature]
As maiores zonas inóspitas em que a actividade humana é quase nula são árticas ou antárticas, mas entre os trópicos também abundam.
1. O Norte do Canadá e o Alasca, com imenso território vazio e selvagem, em particular as muitas ilhas, grandes e pequenas, do Arquipélago do Ártico. Podemos anexar a glaciária Gronelândia.
Ulukhaktok (Holman) é a única aldeia na ilha de Victoria, que é do tamanho de França; lá vivem ao todo 400 pessoas.
2. O Norte da Rússia, a enorme zona de tundra ártica entre a Lapónia e a penísula do Kamchatka, descendo até à taiga do Baikal. Zona também alagada por grandes rios.
Entre os Urais e Yakutsk (a chamada 'capital do frio'), são 6 000 km de tundra gelada e montanha de taiga quase deserta.
3. O deserto Africano, Sahara e anexos, um território no todo maior que a Europa e com população residual.
Tahua, Niger.
4. O interior da Austrália, área também muito vasta de deserto ou quase, inóspita em extremo.
O Red Centre australiano, em Uluru Kata.
5. A Amazónia, que ainda contém uma larga área desabitada de selva e montanha.
Roraima, norte da Amazónia.
6. O planalto Tibetano, deserto montanhoso que se estende para Norte até à Mongólia.
7. A Antártida (excepto a Península)
Tirando centenas de pequenas bases científicas como esta Trollstasjonen, todos os 14 milhões de km2 (= China + Índia) são deserto gelado.
Se a Terra tem 134 milhões de Km2 habitáveis, quase 60 milhões estão praticamente desabitados, mais do que todo o continente americano. É uma imensidão. Não consigo imaginar que não se aproveitem territórios desses se houver uma crise climática grave. Ou mesmo que não haja !
Mogadouro e Montalegre a Norte, e Mértola a Sul, são os concelhos menos povoados em Portugal, sem contar as Ilhas.
Guadiana junto à ponte de Serpa; daqui até Mértola a N265 atravessa a região mais deserta de Portugal (~5 hab/km2), nas duas margens do Guadiana.
Azenhas do Guadiana, junto a Mértola. Deserto bem simpático !