segunda-feira, 30 de novembro de 2020

O Museu de Pont-Aven , visita anti-confinamento

Museus, uma grande invenção do século XVIII. Que falta fazem quando fecham; não é como fechar um café ou uma livraria, que já é lamentável; museus fechados é como ficar subitamente órfão, sem memórias nem passado, agarrado ao horrível presente da TV como num filme de ficção de controle totalitário. Há outra vida? Há, nos museus, por exemplo. 

Tenho aqui feito relato de museus que visitei, e de outros que não. Tinha-me esquecido de Pont-Aven. Um dos tesouros da Bretanha é este pequeno museu na mui artística cidadezita onde Degas, Gauguin, Sérusier, Corot, Émile Bernard, frequentaram a famosa escola, desde 1888, e onde se refugiavam do impressionismo dominante.

Canal em Pont-Aven, Richard Henry Miller [musée d'Orsay]

Estive em Pont-Aven quando fiz umas férias na Bretanha em 2002. O que existe hoje é uma vila pitoresca, demasiado turística, com um porto de marés onde se registam amplitudes até 8 metros. Ah, e crêpes divinais.

A ponte e o café Central.

Traou Mad (= 'coisas boas'), talvez a mais famosa crêperie do mundo, e um dos moínhos do Aven.

O Museu de Pont-Aven, fundado em 1985 no edifício de um antigo hotel, não nasceu com uma colecção própria; foi beneficiando de empréstimos, exposições temporárias e umas poucas aquisições mais recentes. 


Muitas obras menores, certamente; a mais significativa riqueza é a colecção privada Alexandre Mouradian, cedida pelo mecenas amador de arte. Agora, até 6 de Janeiro, exibe também obras do espólio em reserva no armazém, escolhidas pelo público no site do museu.  As imagens que consegui sugerem um riqueza imprevisível, com muitas obras lindíssimas, dignas de um grande mestre.

Louis Roy, Femmes prés d'une rivière, 1895

Émile Bernard é um dos mais bem representados na colecção, embora muitas obras suas estejam no Orsay.

Femme au kimono à la lecture, Émile Bernard

Émile Bernard foi muito influenciado pela pintura japonesa e pelos vitrais: simplificação da formas, cores mate vivas, planas, cercadas por traço negro. Nasceu assim o cloisonnisme, associado depois ao synthétisme, corrente que se queria distanciar do impressionismo.

Portrait de Madame Schuffenecker, Émile Bernard, 1888

Étude pour le blé noir, Émile Bernard, 1888.

Faneuses à Doëlan, Richard Raft

Deyrolle, La glaneuse d'orge, 1942

Jean Deyrolle (1911-1967 ), pintor abstracto bretão, aqui ainda na fase figurativa; uma respigadora recolhe os restos de cereais que sobraram na terra depois da ceifa. 

Couple enlacé de dos, Henry Sérusier

Henry Moret, Chaumières en Bretagne, um tema recorrente.

Charles Filiger, Paysage Rocheux, ca. 1891

Outra obra maior do cloisonnisme, com um tratamento fabuloso da cor, que marca o ritmo vertical do quadro.


Gauguin, Village breton sous la neige, 1894 [cedido pelo museu d'Orsay]

Hokusai, Le pont Flottant de Sano

No fim do século XIX, o Japonismo foi moda. Esta estampa de Hokusai pertence à série da década 1830 "Vistas invulgares de pontes famosas de todas as províncias" (Shokoku meikyō Kiran); um cavaleiro e dois caminhantes atravessam a ponte de barcas na estação das neves. O branco e a neve ressaltam da cor azul da Prússia do rio. 


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Espero ter contribuído para alguns minutos bem passados em casa...

O porto de Pont-Aven


sábado, 28 de novembro de 2020

Hvar, campos de alfazema, e um salmonete do Adriático

Esta memória já vem de 1983, é das mais antigas escapadas minhas para a Europa, numa altura em que namorar era a prioridade absoluta... e a minha donzela estava em Zagreb, de onde partimos para umas férias no Adriático. Um luxo, naquela época, embora o país estivesse ainda sob o regime de 'autogestão' socialista que impunha muitas limitações e cuidados. Curiosamente, o contraste com o Portugal triste da época (?!) era favorável à Jugoslávia, onde apesar do partido único e da corrupção se sabia gozar a vida com mais intensidade. 

Fomos num avião da JAT (se fosse hoje, que medo, ui!) até Split, uma das mais belas cidades daquela costa, com uma riquíssima herança Romana; e dali, em ferry até Hvar, numa travessia amena sob o sol de Verão e sobre um mar tranquilo muito azul, parecia o mar das Caraíbas.

O ferry era da Jadrolinija, talvez fosse este, viajámos a pé descalço no convés superior.

A chegada foi outra maravilha - o cenário do porto renascentista é lindo, sobretudo quando a pedra calcária da cidade reflecte a cor quente do sol. Todo o caminho para o alojamento foi um deslumbramento pela arquitectura, pelas tonalidades do casario, pelas palmeiras com o seu porte exclusivo. Deve ter sido assim que Paul Klee se sentiu quando chegou à Tunísia.



O alojamento era muito, muito fraquinho, nem os nossos recursos davam para mais; mas o quarto tinha uma janela que nunca mais esqueci que abria para o Adriático, moldado por palmeiras... algo assim:

Só íamos ficar três dias; ao segundo fizemos uma excursão na camionete de carreira através da ilha, por entre campos de lavanda e alfazema, até a outro portinho, na costa norte - Stari Grad *; fundada pelos gregos, é a mais antiga povoação da ilha. A camionete era velha e ronceira, como é tipico de países atrasados, e com muitas paragens em sítios de lá vem um; mas o perfume ao longo da estrada fazia esquecer a demora.

A ilha foi colónia grega, e já nessa altura as riquezas que eles procuravam eram a lavanda e os vinhos.

Chegámos à hora de almoço, famintos, pois o pequeno almoço fora cedíssimo. Sob o intenso calor do meio-dia, depois de várias ruelas vazias percorridas - parecia Espanha na hora da sesta - demos com um restaurante.

Casa de pedra, iguarias penduradas do tecto de madeira, velharias e quadros locais a decorar paredes, menu de porto de pesca. O Antika. Tinha de ser ali: encomendámos um peixe grelhado para dois, que iria sair bastante caro para o nosso bolso, mas os visitantes da ilha eram sobretudo alemães e austríacos...

Lembro-me que era um peixe grande, talvez um salmonete, acompanhado de legumes assados, entre eles tomates recheados que na altura nunca tinha provado. Tudo bem regadinho num azeite espesso. Também me lembro de que o branco Pošip me deixou em mau estado, e depois não me recordo de mais nada desse dia, nem sequer do regresso de camionete.

Those were the days.

Stari Grad

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* = cidade antiga

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Emilie Mayer, (mais) uma grande senhora da música

Ainda há pouco aqui relatei o valor da obra musical da compositora Alice Mary Smith, com grande sucesso aliás ( 58 visionamentos). Pouco a pouco outras mulheres desta arte vão ressurgindo que a história injustamente ignorou, e não é só questão de sociedade machista, aconteceu também a muitos homens da música. 

Emilie Mayer (1812-1833) nasceu em Friedland, a norte de Berlim e já perto do Báltico, de uma família de poucos recursos - o pai era apoticário; recebeu lições de piano ainda em jovem mas não se revelou para a música senão muito mais tarde, depois da morte do pai em 1840; em 1847, aos 35 anos, mudou-se para Berlim onde aprendeu contraponto e orquestração. Viajou desde esses anos pela Europa (Colónia, Munique, Hamburgo, Lyon, Bruxelas, Viena), dando a conhecer as suas obras em concertos, dentro do estilo clássico vienense a transitar para o romântico; foram na altura muito aclamadas, mas muito poucas chegaram a ser publicadas. Compôs obras sinfónicas incluindo oito sinfonias, obras corais e instrumentais. doze quartetos de cordas, sonatas para violino, piano e violoncelo, canções. 

Emilie viveu sempre celibatária, estando a sua casa em Berlim aberta a convidados da vida social e política; mas depois da sua morte foi praticamente esquecida.

Começo então pelo Concerto para piano e orquestra; muito mozartiano, com partes do 1º andamento 'inspiradas' no nº23 de Mozart, mostra ainda assim a capacidade de escrever música de algum fôlego e complexidade, mais evidentes no talentoso Allegro final. Ao piano Ewa Kupiec, dirige Sebastian Tewinkel:

I.   Allegro 0:00
II.  Un poco adagio 13:40
III. Allegro 20:49

Noutro registo, ao vivo, Notturno para piano e violino, composição de algum requinte técnico:



A Sinfonia nº 7 é uma obra magnífica toda ela, mas os dois primeiros andamentos surpreendem pelo impulso criativo.

I.   Allegro agitato 00:00 
II.  Adagio 10:50 
III. Scherzo, Allegro vivace 20:57 
IV. Finale: Allegro vivace 27:42

Consegui apenas um CD com obras de Emilie Mayer; na Sinfonia, toca a Newbrandenburger Philarmonie .

São as seguintes as compositoras clássicas de mérito que conheço:

      Alice Mary Smith   
      Anna Bon di Venezia
      Cécile Chaminade
      Clara Schumann
      Elisabeth Jacquet de la Guerre
      Emilie Mayer
      Fanny Mendelssohn
      Francesca Caccini
      Hildegard von Bingen
      Louise Farrenc
      Madalena (Laura) Sirmen

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Primeira obra prima absoluta do século XXI para a posteridade.


Costumo lamentar o declínio das Artes e das Ciências pela falta de obras marcantes, universais, cujo génio criativo salte aos olhos e entusiasme pelo menos o círculo mais culto, tal como acontecia na Renascença com a arquitectura urbana ou nos séculos XVIII e XIX com a música, a pintura e as viagens de exploração, ou na era Victoriana com as novidades científicas e técnicas.


Reconheço todas essas qualidades no projecto de sucesso que é o Falcon / Dragon, colaboração entre a NASA a empresa SpaceX de Elon Musk. Já o Shuttle era uma obra de talento, ainda algo tosca, mas agora temos verdadeiro génio, aquela espécie de génio colectivo de uma equipa, que não podemos atribuir a este ou aquele indíviduo, embora Elon Musk mereça boa parte do crédito. 

Cenas de um filme de SF ?


Não sei se 'as pessoas' se dão conta, mas este é o projecto que nos levará de volta à Lua e, evoluindo em complexidade e dimensão, até Marte. Tem um fôlego de uma obra de século, que vai ficar na História, e é bonito que se farta.


A empresa SpaceX nasceu em 2002 e cresceu rapidamente até aos mais de 8000 empregados que constituem a equipa, sendo agora a maior empresa aero-espacial, com mais de uma centena de lançamentos. O sistema inclui a recuperação do 1º andar do Falcon, que pousa na vertical sobre uma plataforma marítima, com cada vez mais casos de sucesso.

Levantando o Falcon para a plataforma de lançamento.

Lançamento de um Falcon com a cápsula Dragon.

Recuperação do 1º andar na plataforma marítima 'drone'.

Alguns detalhes da obra:

O Falcon durante a montagem, vendo-se os 9 motores Merlin montados em favo octogonal.

Os motores Merlin fornecem uma potência máxima de 7600 kN, próxima da que conseguia o Saturn V, e quase o dobro da Soyuz russa que tem sido utilizada. O combustível é Oxigénio Líquido (LOX) e o propulsor RP-1, um querosene refinado parecido com o dos aviões a jacto; a injecção é por turbina.

No caso do Falcon 9 com cápsula Crew Dragon, que faz vaivém pra a Estação Internacional, a velocidade máxima atingida ronda os 28 000 km/h. O fabricante dos Merlin usa a tripla-redundância, garantindo que o sistema funciona com duas avarias sucessivas, usando três computadores em cada unidade, cada um a monitorizar em permanência os outros dois.

Cápsula Crew Dragon vendo-se os painéis solares recolhidos em supefície cilindrica.



Outra característica desta obra de arte e ciência é a sua permanente evolução; não é uma obra acabada, mas sim um 'work-in-progress', e provavelmente atingirá o seu grau maior de arrojo no projecto Starship para Marte. A nave que o realizará já está em estado avançado de projecto.

Protótipo do Starship em testes.


En route...

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Sobre a pandemia teremos talvez algumas linhas nos futuros relatos históricos; sobre a renascente aventura espacial haverá certamente muito mais a dizer, espero que venha a ser a grande marca do século. É pelo menos um sinal mais positivo que nos faltava para o futuro próximo.



domingo, 15 de novembro de 2020

Visita outonal ao Parque de Santa Marinha, depois de Andy Sheppard

Como já é costume, voltei a Guimarães em Novembro para o Jazz; desta vez foi Andy Sheppard acompanhado por três músicos portugueses, para cumprir as restrições impostas. E Sheppard só pôde vir porque já é residente em Portugal desde há alguns anos.

Andy Sheppard é um 'virtuoso' do saxofone, que toca com uma facilidade e mestria de quem já o conhece desde menino. Não toca com sangue suor e lágrimas - o estilo dele é mais cerebral, toca com alma de europeu sábio, uma espécie de jazz civilizado e muito trabalhado como é costume na ECM; criativo sim, mas sem dilacerar. Por vezes até plana um pouco ao nível de música  de 'ambiente'. O guitarrista Mário Delgado também teve algum protagonismo, esteve bem no diálogo da guitarra com o saxofone, também sem deslumbrar. Foi, portanto, bonito mas morno.

No dia seguinte, dia de glorioso sol outonal, subimos à Pousada a revisitar o Parque do Mosteiro.


Era lugar de recreio e meditação dos frades e monges das sucessivas ordens.

A antiga Cerca sobe pela encosta, em socalcos com escadaria central, através de uma mata de carvalhos, plátanos e castanheiros.

Douradas nas copas, castanho-torradas no chão, as folhas dão festival.

Outro festival são os fofos musgos com muitos anos (séculos?) de espessura.



No topo fica o tanque circular barroco que rega todo o parque. 



Sorte nossa de visitantes únicos, tivemos um património vasto para nosso exclusivo. Na enorme Pousada só vimos duas pessoas - o recepcionista e a empregada do bar. 

Se o fim do mundo for assim, é muito triste mas tranquilo e bonito.