-------- Viagem, longa, de novo ano --------
Suponho que tem a ver com a leitura do genial Miguel Strogoff de Verne e mais tarde com leituras sobre os Tártaros e as 'raças' do Cáucaso, com as Cidades de Calvino também, mas a verdade é que tive sempre uma fantasia de desejo de Kazan, imaginei-a como cidade maravilha de canais e palácios, gente superior e bonita; a vontade de lá ir esbarrou com as dificuldades da viagem, e lá se foi Kazan (e Samara...). Agora só posso vê-la assim, em televiagem, termo aliás execrável; seja lá como for, é a minha passeata inaugural de 2021, peço desculpa pelo atraso, mito trabalho me deu.
O que é a Tartária e quem são os tártaros ?
A Tartária começou por ser algo como Thule ou as Terras do Preste João: designava uma região desconhecida, efabulada, que se estendia entre os Urais e o Pacífico englobando o Cáucaso, a Mongólia, a Manchúria e as estepes da Ásia central. Os habitantes Tártaros eram também uma mescla de populações encarada com desconfiança e receio, sobretudo desde as terriveis incursões Mongóis - que afinal atacaram e submeteram o actual Tartaristão - , e consideradas bárbaras durante o Iluminismo. O desconhecimento e menosprezo durou até ao século XIX, quando se começou a distinguir entre etnias, culturas e nações, com alguma simpatia nascente. O uso da designação russa Sibéria acabou com a vasta e vaga Tartária, que passou a designar-se República do Tartaristão, habitada pelos Tártaros do Volga que já descendem da mixigenação com os mongóis da Horda Dourada.
Ivan o Terrível conquistou o Khanato (de Khan) de Kazan para a Rússia em 1552, dizimando a população e cristianizando os sobreviventes. Em 1593 as mesquitas estavam destruídas, substituídas por catedrais ortodoxas; só no século XVIII, depois de sucessivas insurreições, voltaria a haver culto muçulmano; esse curto período de crescimento e progresso (Universidade, imprimarias, jornal, tramway, indústria) durou até pouco depois da Revolução de Outubro, que proibiu todas as religiões encerrou os templos, ilegalizou distinções étnicas e acabou por condenar os tártaros a uma grande fome prolongada que os dizimou. Desde 1992 que a República do Tartaristãp reclama independência, mas sem os fortes apoios que outras tiveram.
São referência literária obrigatória Ada de Nabokov e o Squire's Tale de Chaucer; ou este romântico poema:
Tartária, Walter de la Mare
Se eu fosse Senhor da Tartária,
Eu, e apenas eu,
Teria um leito de marfim,
De ouro lavrado era o meu trono;
No meu pátio exibia faisões,
Nas minhas florestas mandavam os tigres ,
Nos meus tanques peixes serpentevam
As barbatanas contra a luz do sol.
Kazan é conhecida como porta de entrada na Sibéria. Está a oeste dos Urais, numa região plana da bacia do Volga, com poucas elevações mais a sul, situada na confluência dos rios Volga e Kazanka, e entre um sistema de lagos denominado Kaban.
A Catedral, as duas Torres, a Mesquita (2005, feia), Palácios e muralha.
A Catedral da Anunciação (ortodoxa) é o mais antigo edifício em pedra de Kazan. Do mesmo arquitecto que construiu a Catedral de S. Basílio da Praça Vermelha de Moscovo, Postnik Yaklev, foi começada em 1552, após a ocupação da cidade pelos russos, e terminada em 1562.
Tem 5 cúpulas e 6 naves.
A própria muralha da cidadela é notável, toda caiada a branco e visível a grande distância.
Mercado de Kazan
Manhã de mercado, na rua Bauman.
O mercado dos domingos é muito colorido, de produtos agricolas a velharias; é também o melhor local para apreciar a variedade étnica e ouvir a algazarra cruzada das muitas línguas.
São poucas as antigas casas tradicionais tártaras que sobrevivem. Algumas têm vindo a ser restauradas numa chamada "aldeia tártara" que faz parte do património do Museu 'Chak-Chak' (sim, é mesmo chak-chak!). Esta antiga zona residencial foi fundada por comerciantes ricos nos séculos XVII - XVIII.
Fecho de colar 'yaka chylbyry', tártaro, séc. XVIII-XIX.
A cultura Ananyino existiu nos séculos VIII-III A.C. na região do actual Tataristão, junto ao Volga. O museu tem algumas peças raras como este belo punhal:
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E daqui, o Trans-siberiano para Irkutsk e o lago Baikal !
4 comentários:
Foi uma grande coincidência. Eu estava querendo saber algo sobre Kazan. Quanto ao Baikal, ainda quero visitar, no período do degelo, talvez. Obrigado pela excelente
postagem!
Que maravilha! E é tão estranho, porque ao ver as imagens e ao ler as descrições, fico com a sensação de que há ali algo ao mesmo tempo muito familiar e muito diferente. É fascinante. (E admiro o trabalho que o Mário deve ter para fazer estes posts!)
Inês, finalmente, foi a Inês a reconhecer o trabalho - e o gosto - que estas reportagens fictícias me dão. Kazan faz parte das cidades míticas que associo às de Calvino, um foco de civilização misteriosamente afastado de tudo. A recolha de fotos, de peças de museu, de cenas de rua, exige muuuitas horas de pesquisa, dezenas de páginas em russo para traduzir... Claro que o faço por prazer, mas é bom sentir reconhecimento, e logo da Silvertree, obrigado.
A COVID-19 tem-me mantido afastado dos "blogs", por excesso de trabalho, mas hoje (em dia de folga após várias semanas sem ela) estou a conseguir voltar cá.
Fascinantes estas reportagens. Não importa se são fictícias ou não, abrem-nos o mundo e enriquecem-nos. Um trabalho absolutamente notável. Muito obrigado.
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