sábado, 9 de janeiro de 2021

Kazan, bela tártara, cidade sonhada

-------- Viagem, longa, de novo ano --------

Suponho que tem a ver com a leitura do genial Miguel Strogoff de Verne e mais tarde com leituras sobre os Tártaros e as 'raças' do Cáucaso, com as Cidades de Calvino também, mas a verdade é que tive sempre uma fantasia de desejo de Kazan, imaginei-a como cidade maravilha de canais e palácios, gente superior e bonita; a vontade de lá ir esbarrou com as dificuldades da viagem, e lá se foi Kazan (e Samara...). Agora só posso vê-la assim, em televiagem, termo aliás execrável; seja lá como for, é a minha passeata inaugural de 2021, peço desculpa pelo atraso, mito trabalho me deu.

O que é a Tartária e quem são os tártaros ?

A Tartária começou por ser algo como Thule ou as Terras do Preste João: designava uma região desconhecida, efabulada, que se estendia entre os Urais e o Pacífico englobando o Cáucaso, a Mongólia, a Manchúria e as estepes da Ásia central. Os habitantes Tártaros eram também uma mescla de populações encarada com desconfiança e receio, sobretudo desde as terriveis incursões Mongóis - que afinal atacaram e submeteram o actual Tartaristão - , e consideradas bárbaras durante o Iluminismo. O desconhecimento e menosprezo durou até ao século XIX, quando se começou a distinguir entre etnias, culturas e nações, com alguma simpatia nascente. O uso da  designação russa Sibéria acabou com a vasta e vaga Tartária, que passou a designar-se República do Tartaristão, habitada pelos Tártaros do Volga que já descendem da mixigenação com os mongóis da Horda Dourada.

Ivan o Terrível conquistou o Khanato (de Khan) de Kazan para a Rússia em 1552, dizimando a população e cristianizando os sobreviventes. Em 1593 as mesquitas estavam destruídas, substituídas por catedrais ortodoxas; só no século XVIII, depois de sucessivas insurreições, voltaria a haver culto muçulmano; esse curto período de crescimento e progresso (Universidade, imprimarias, jornal, tramway, indústria) durou até pouco depois da Revolução de Outubro, que proibiu todas as religiões encerrou os templos, ilegalizou distinções étnicas e acabou por condenar os tártaros a uma grande fome prolongada que os dizimou. Desde 1992 que a República do Tartaristãp reclama independência, mas sem  os fortes apoios que outras tiveram.

São referência literária obrigatória Ada de Nabokov e o Squire's Tale de Chaucer; ou este romântico poema:

Tartária, Walter de la Mare

Se eu fosse Senhor da Tartária,
Eu, e apenas eu,
Teria um leito de marfim,
De ouro lavrado era o meu trono;
No meu pátio exibia faisões,
Nas minhas florestas mandavam os tigres ,
Nos meus tanques peixes serpentevam
As barbatanas contra a luz do sol.


Kazan é conhecida como porta de entrada na Sibéria. Está a oeste dos Urais, numa região plana da bacia do Volga, com poucas elevações mais a sul, situada na confluência dos rios Volga e Kazanka, e entre um sistema de lagos denominado Kaban.

Chega-se, de preferência, por combóio. Logo a estação é monumental:





Kazan ainda é europeia, mas com larga presença de culturas orientais e caucasianas -  tártaros, russos, cossacos, persas, arménios, mongóis,  judeus, ucranianos, chineses ... usam-se actualmente três grafias oficiais: cirílica, arábica e latina.

"Havia ali mujiques, vestindo camisas de quadradinhos por baixo das suas largas peliças, e camponeses do Volga com calças azuis por dentro das botas, camisas de algodão cor-de-rosa presas por uma corda, e bonés largos ou gorros de feltro.(...) Viam-se tártaros vestidos com um cafetã de mangas curtas e com bonés pontiagudos com largas bandas a lembrar um 'Pierrot'; outros cobertos com um longo capote, tinham na cabeça uma curta calote à maneira dos judeus da Polónia. As mulheres, com o peito decorado com abundante ouropel, traziam na cabeça um diadema levantado em forma de crescente, formavam animados grupos onde se tagarelava."
[Júlio Verne, Miguel Strogoff ]

Famoso é o Kremlin (cidadela) de Kazan, só comparável ao de Moscovo, e classificado como Património Mundial.

A Catedral, as duas Torres, a Mesquita (2005, feia), Palácios e muralha.

As cúpulas azuis à esquerda são da Catedral; a torre branca é a Spasskaya, a de tijolo é a Söyembikä; à esquerda da mesquita é o Hermitage-Kazan e à frente está o Palácio do Governador.

A Torre Söyembikä, ou 'mesquita do Khan', é inclinada como a de Pisa.
 

Uma lenda data a torre do século XVI: Söyembikä, a última raínha do Khanato de Kazan, estava obrigada sob ameaça a aceitar casamento com Ivan o Terrivel. Inconformada, acabou por se atirar do alto da torre que ele tinha mandado construir para a contentar.

A Torre Spasskaya (1556), porta de entrada do Kremlin, pertencia a um convento destruído nos anos 20. Fica ao fundo da rua Bauman, ligando ao centro urbano.


A Catedral da Anunciação (ortodoxa) é o mais antigo edifício em pedra de Kazan. Do mesmo arquitecto que construiu a Catedral de S. Basílio da Praça Vermelha de Moscovo, Postnik Yaklev, foi começada em 1552, após a ocupação da cidade pelos russos, e terminada em 1562.

Tem 5 cúpulas e 6 naves.



Um interior sumptuoso várias vezes restaurado.



O Iconostasis tem, à esquerda da Porta Sagrada, a famosa Vírgem Mártir de Kazan.


A própria muralha da cidadela é notável, toda caiada a branco e visível a grande distância.


Nas ruas centrais próximas, Bauman, Kremlevskaya e Profsoyuznaya, encontra-se o restante património de Kazan e o comércio desta cidade de mercado.
 
Ul. Bauman, a rua pedonal, por vezes repleta de gentes.
 

 
Várias fontes decoram a rua Bauman:
 
Esta é dedicada a 'Su Anasy', a sereia que protagoniza uma fantasia poética popular na Tartária.

Mercado de Kazan
Manhã de mercado, na rua Bauman.

O mercado dos domingos é muito colorido, de produtos agricolas a velharias; é também o melhor local para apreciar a variedade étnica e ouvir a algazarra cruzada das muitas línguas.

Especiarias

Frutos secos
 
'Tubeteikas' do Tatarstão, bordadas em seda.
 
 
Cerâmica tártara
 
 
Joalharia da Ásia Central
 

Entre preciosidades variadas, salientam-se os samovars.
 


Outra rua importante, com bares e cafetarias, é a Profsoyuznaya:


Кафе Cвиmер (Swimer), o mais requintado café de Kazan. 
 
Sim, estamos na Europa !


Staro-Tatarskaya Sloboda
Aldeia-museu

São poucas as antigas casas tradicionais tártaras que sobrevivem. Algumas têm vindo a ser restauradas numa chamada "aldeia tártara" que faz parte do património do Museu 'Chak-Chak' (sim, é mesmo chak-chak!). Esta antiga zona residencial foi fundada por comerciantes ricos nos séculos XVII - XVIII.


As mais antigas são do século XVIII.
 


A casa de Yunusov-Apanaev, do século XIX, é a mais vistosa:


No Museu serve-se chá em samovar, como é tradição:

 
Além do 'Centro Hermitage-Kazan', que em exibições temporárias expõe espólio da sua sede em S. Petersburgo, há ainda o Museu Nacional do Tartaristão, dedicado à História tártara.
 
 
Fica à entrada da rua Kremlevskaya, e é o mais visitado da cidade.

 
 
 
Fivela de cinto tártaro, séc. XIX.

Fecho de colar 'yaka chylbyry', tártaro, séc. XVIII-XIX. 

 
Pendente com pato em ouro, séc. XI , obra prima de joalharia dos tártaros do Volga.

A cultura Ananyino existiu nos séculos VIII-III A.C. na região do actual Tataristão, junto ao Volga. O museu tem algumas peças raras como este belo punhal:

Voltemos à cidade para a despedida.
 

O Bolaq (Bulak) é um canal artificial que liga o sistema de lagos Kaban ao rio Kazanka; o canal atravessa o centro da cidade conduzido por diques  laterais.


É neste canal do Volga que fica a bonita ponte Lebedevskiy.
 


No Inverno, Kazan tem um apelo diferente.







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E daqui, o Trans-siberiano para Irkutsk e o lago Baikal !

4 comentários:

Arnaldo Leles disse...

Foi uma grande coincidência. Eu estava querendo saber algo sobre Kazan. Quanto ao Baikal, ainda quero visitar, no período do degelo, talvez. Obrigado pela excelente

postagem!

SilverTree disse...

Que maravilha! E é tão estranho, porque ao ver as imagens e ao ler as descrições, fico com a sensação de que há ali algo ao mesmo tempo muito familiar e muito diferente. É fascinante. (E admiro o trabalho que o Mário deve ter para fazer estes posts!)

Mário R. Gonçalves disse...

Inês, finalmente, foi a Inês a reconhecer o trabalho - e o gosto - que estas reportagens fictícias me dão. Kazan faz parte das cidades míticas que associo às de Calvino, um foco de civilização misteriosamente afastado de tudo. A recolha de fotos, de peças de museu, de cenas de rua, exige muuuitas horas de pesquisa, dezenas de páginas em russo para traduzir... Claro que o faço por prazer, mas é bom sentir reconhecimento, e logo da Silvertree, obrigado.

Fanático_Um disse...

A COVID-19 tem-me mantido afastado dos "blogs", por excesso de trabalho, mas hoje (em dia de folga após várias semanas sem ela) estou a conseguir voltar cá.
Fascinantes estas reportagens. Não importa se são fictícias ou não, abrem-nos o mundo e enriquecem-nos. Um trabalho absolutamente notável. Muito obrigado.