quarta-feira, 14 de abril de 2010

E enfim, os Mestres Cantores

Ainda continuo fascinado e ao mesmo tempo intrigado com a récita dos "Mestres Cantores de Nuremberga" de Wagner a que agora assisti (10/4, Opernhaus de Zurique), para mim uma estreia.

Os Mestres Cantores é uma ópera de homens, e de homens maduros. O basso reina. Dois reis absolutos, Michael Volle e Matti Salminen, ofuscaram. O Beckmesser de Volle, sobretudo – um papel bem difícil – foi arrasador ! Ainda para mais o homem é muito bom actor. Foi curioso ver o personagem mais negativo e humilhado por Wagner salientar-se assim pela qualidade do canto. Consegue fazer o que quer com a voz, ginásticas difíceis em que tem de exprimir que canta mal, cantando bem ! Imensa ovação. É verdade que Volle já faz Beckmesser há muito tempo, e lá passeou em grande por Bayreuth. Um senhor.

Salminen, que eu já tinha aqui postado em videoclip, foi bom, muito bom, com aquela voz firme e possante. De bengala, devido a uma operação ao joelho, parecia ainda melhor no papel de Veit Pogner. É pena que Wagner lhe tenha dado tão pouco tempo de antena...

(Pequena) decepção foi o terceiro baixo, Alfred Muff no mui nobre sapateiro Hans Sachs. O termo de comparação que eu tenho (em DVD) era tremendo: a obra prima de James Morris no MET com Levine. Muff é competente mas não correspondeu às expectativas, tanto mais que para mim é Sachs o principal personagem desta ópera e Muff foi algo tíbio.

O imprevisto foi o tenor americano Robert Dean Smith. Substituiu Peter Seiffert como cavaleiro Walther Von Stolzing. Já tinha ouvido opiniões divididas sobre Seiffert neste papel, já conhecia o seu belo timbre mas insegura voz. Nunca tinha ouvido Robert Dean Smith. Começou a cantar nos Meistersinger em Bayreuth, 1997. A escala da voz não será das mais largas, não se ouve bem sobre a orquestra, o timbre é comum, mas nunca gritou nem mostrou esforço, antes evidenciou grande segurança, firmeza e flexibilidade. Um verdadeiro prazer ouvi-lo no início do 3º acto, quando ensaia a canção com Sachs, na sua melhor prestação, cheio de força e bravura; ao nível de um Chris Merritt ! Muito bem (sem deslumbrar). Como actor, pouco expressivo, mas acho que fiquei a ganhar com a troca. Parece que tem feito por aí um Tristão muito aclamado.

A orquestra e a direcção de Philippe Jordan foram impecáveis, no sentido em que não ouvi uma única falha, atraso, adianto, desequilíbrio. Tenho dificuldade em distinguir uma “boa” de uma “má” interpretação instrumental de Wagner. Ao contrário dos barrocos e clássicos, onde há interpretações desastrosas e interpretações geniais, onde se debatem escolas e estilos para proveito de todos nós, tenho a sensação de que toda a gente toca Wagner da mesma maneira. Jordan e a sua orquestra pareceram perfeitos, em particular os leit motiv de Wagner eram enfatizados em crescendos com belo efeito, sublinhando cada personagem. A conjugação com os coros no 3º acto foi primorosa e de grande impacto.

A produção, sem fastos nem excessos, cumpriu no essencial: grandes vozes. Qunto à ideia do encenador Nikolaus Lehnhoff , era aliviar a carga nacionalista do texto e tentar modernizar e globalizar à europeia a perspectiva originalmente germânico-ariana. Começou por um cenário escuro e pesadão, com carga inquisitiva, trajes à antiga (muito bonitos, diga-se) e ambiente tribunício. Sofrível.

No segundo acto, desastre: a modernização minimalizou a rua de Nuremberga à noite numa escadaria e numa “lua” que mais parecia a bola de luz de uma discoteca.

Como este acto é o menos conseguido da ópera, com excessivas delongas, pouca teatralidade e alguma pobreza musical, exigia-se ao menos que compensasse com um cenário visualmente atraente e boa movimentação dos actores. O cavaleiro von Stoling esteve à altura, Michael Voller também foi espectacular na conjugação da magnífica “péssima” voz (por vezes de difícil colocação) com a gesticulação e expressividade. Mas uma solução cénica feia e ridícula quase deu cabo de tudo: os amorosos Walther e Eva escondem-se, não num banquinho atrás de uma árvore, como era suposto, mas...num buraco no chão do palco ! Horrível! E a janela onde Madalena vem ouvir a serenata de Beckmesser dedicada a Eva é...um camarote da sala! Ora, soluções fáceis, baratas e feias, à São Carlos.

Já no 3º acto, o conceito de Nikolaus Lehnhoff resultou. Mesmo que isso desagrade a muitos Wagnerianos, ele conseguiu des-germanizar: situou as festas joaninas na arena de um teatro grego, colocou um coro grego na escadaria vestido de camisa e calças brancas, humilhou o pobre Beckmesser com palhaçadas mais próprias de comédia italiana e pôs o cavaleiro da Francónia a cantar a canção vencedora sobre um tronco de coluna grega, com vibrato e ênfase bastante bel-cantisticos ! Nada disto contraria o discurso final de Hans Sachs em prol da sublime arte germânica, que assim o é para nossa alegria e proveito. Houve grandiosidade e pathos q.b. no final !

Noite em cheio, pois. Não há récitas perfeitas, os homens não são máquinas, o que conta é que criaram com empenho nessa noite um entusiástico momento de canto, teatro e música.

O público de Zurique é geneticamente diferente do de Lisboa ou do Porto. Possivelmente trata-se de uma mutação que evoluiu para uma espécie que não sofre irritações na garganta. Não ouvi uma, mas uma única, tosse durante as 4 hora de ópera. E quando sussurrei inaudivelmente um comentário, fui metido na ordem com um imperativo schutz!

Fotos do site da Opernhaus (excepto a primeira e a última)

Nota - repete a 17/4, 1/5, 8/5 e 3/7

4 comentários:

Paulo disse...

Ah, ei-la. Obrigado pela descrição exaustiva que nos deixa a visualizar, e quase escutar, esses "Mestres".

Encenações à São Carlos não faltam por aí, é um facto, com a diferença que teatros que se prezem apresentam-nas com alguma dignidade, não?

Não conhecendo bem nenhum dos tenores em causa, também estou em crer que ganhou com a troca. Temo que Seiffert não esteja em grande forma, a avaliar por um pequeno trecho do Tristão de Barcelona.

Assisti uma única vez ao vivo aos "Mestres" e foi no TNSC. Bernd Weikl, nessa época excelente, ofereceu-nos um Hans Sachs de grande categoria.

Já quanto aos maestros e às orquestras, não estou nada de acordo que todos dirijam (e toquem) Wagner da mesma maneira. Em suma, acredito que tenha sido uma óptima récita e fico contente por si.

Mário R. Gonçalves disse...

Paulo,

Sabe bem ter um comentador assim tão atento.

Conhece com certeza Wagner muito melhor do que eu. Do pouco que leio, costumo encontrar longos comentários aos cantores e à encenação, e muito pouco sobre a direcção musical. Assumi que os manuscritos de Wagner eram muito "fechados" e precisos, não deixando grande espaço para a idiossincrasia do maestro.

Não quer, no seu Valquírio, elaborar sobre o assunto? talvez apresentando exemplos de diferentes estilos de tocar de Wagner? se estou a abusar do seu tempo, ignore ;)

Gi disse...

Pela descrição a encenação e os figurinos parecem um bocado trapalhada, sem unidade estética nem temporal.
Mas a parte musical terá sido de suficiente a muito boa, e o cômputo final positivo, não é? E depois, ir ouvir boa música num país civilizado é tão bom :-)
Ainda bem que gostou, Mário.

Paulo disse...

Só o facto de poder estar concentrado a apreciar a música sem ruídos perturbadores já é uma enorme mais-valia.

Mário, o desafio parece-me interessante mas requer a expertise de um musicólogo. Nem me atrevo a aceitar a empreitada.

Mas faça uma experiência. Ouça o prelúdio de Tristão e Isolda por Karajan e, depois, por Boulez. Existe uma tradição muito forte no modo de dirigir Wagner e é difícil fugir a ela, sob risco de deturpar o que está na partitura, mas as sonoridades e as velocidades diferem. Se tiver paciência, continue a experiência com outras gravações.