sexta-feira, 18 de junho de 2010

Saramago e eu ( antes que seja tarde)

A morte de José Saramago tem em mim o mesmo efeito que a morte de qualquer outra pessoa ilustre que não conheço e com quem não simpatizo: não vou chorar a perda nem fazer declarações de insubstituibilidade, nem inscrevê-lo em nenhum panteão. Vou respeitar a obra, admirar o que é de admirar na justa medida (nobel irrelevante) , manter perto de mim e reler os livros de que gostei e afastar os outros. José Saramago escreveu muito bem, escreveu assim-assim e escreveu muito mal.

O mais difícil para mim é tratar da pessoa e não da obra. Eu sei que Jorge de Sena, Fernando Pessoa ou Dario Fo não ficaram conhecidos por simpatia e amabilidade. Sei que muitos outros foram abertamente más pessoas. Mas estão longe de mim no tempo e no espaço. Saramago fez parte da minha história, viveu o meu tempo e o meu país, interveio na minha vida pois interveio na vida pública. Foi ateu militante, com o que eu até poderia simpatizar. Só que a cegueira sobre a qual escreveu NÃO é aquela de que ele padecia: não percebia nada do mundo que o rodeava (também era um poeta, afinal) mas aderiu a um dogma fácil que lhe forneceu receitas para tudo, respostas descabidas e antipáticas, e a torre de marfim onde se isolou é afinal a mesma onde se isolam os restinhos de estalinistas por esse mundo fora.

Vou talvez receber um coro de protestos, mas não queria deixar mal-entendidos: Saramago tinha a sua dignidade e honra, a sua verdade e os seus valores, não abdicou. Eu teria por ele outro sentir se tivesse ouvido dele palavras de humanidade sentida, de reconhecimento por enganos do passado, de reconciliação com coisas simples deste mundo, de um respeito mais próximo da afeição pelos outros.

Não é fácil chorar alguém que na vida só parece ter chorado a sorte dos "espoliados" e clamado contra a sorte dos "ricos", como se as coisas fossem assim tão toscas e de fácil solução. Há aí muitos e bons escritores a lembrar quanto mais complexa é a natureza humana. Assim, até o ateísmo dele está envenenado por um paradigma de pensamento unidimensional.

Leia-se Saramago. Pobre Saramago.

5 comentários:

Anónimo disse...

Um dia ouvi-o dizer que não agradecia nada a ninguém por ser quem era, porque tudo o que ele era tinha-o alcançado sozinho, completamente sozinho (nem pais, nem amigos, nem nada tinha contribuído). Desde então vi nele um homem com o qual, mesmo reconhecendo o seu génio, não teria prazer nenhum em conviver. Não o resumi àquelas frases, mas achei que estas revelavam coisas que, aos meus olhos, o tornavam em alguém com quem eu não construiria nada. No entanto, há tempos li um livro dele que me colocou à frente outro Saramago. Do Saramago que conheci no livro Pequenas Memórias, desse sim, eu sinto a morte. Mas do outro, não sinto. Quanto mais não seja porque se eternizou nas suas obras.

Mário R. Gonçalves disse...

Hummimg,

Este assunto é mesmo um bocado delicado. Imagino que Fernando Pessoa não fosse o melhor dos convivas nem muito dado a ouvir os outros mas continua um deus para mim.

O problema com Saramago é que os tempos são outros, e são os meus. Ele teve todo o conhecimento, todas as oportunidades, toda a informação todos os amigos e todo o apoio para abrir, senão os olhos, ao menos o coração. Escoheu estar lá em cima, no topo do farol, e ver só o horizonte vazio e longe da terra protegido por 50m de granito.

Foi antes disso que escreveu as melhores obras, para mim. Desde então passou a escrever por receita, como Dan Brown, por mais que isto escandalize. Receita literária - a mesma escrita, as mesmas imagens, a mesma ironia sempre - e receita política - não há verdadeiras persongens de carne e osso, há arquétipos, os deserdados, os abandonados, os solitários, os alternativos, e depois os gananciosos, os oportunistas, há leitmotivs - o anticlericalismo, o excesso de descrição....nenhuma personagem de Saramago sobrevive como sobreviveu O capitão Nemo ou Anna Karenina , talvez apenas Baltazar e Blimunda, mas isso foi dos primeiros tempos...Para Saramago, como verdadeiro estalinista, não há indivíduos e a tragédia humana reduz-se à injustiça social.

Não li o livrinho de memórias; se calhar Saramago reencontrou um pouco a sua humanidade...

obrigado pela sua contribuição, sempre bem-vinda

Mário

Fernando Vasconcelos disse...

Também não era fã e certamente não gostava dele como pessoa embora apreciasse o gosto pela polémica. Concordo quase em absoluto consigo, no que me diz respeito gosto de alguma da poesia dele, mais do que da prosa.

Mário R. Gonçalves disse...

Também li e concordei com o seu texto. Mas por aí só se ouvem laudas e mais laudas....

Xico disse...

Muito bem sintetizado. É o que também sinto.