segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

As tábulas de Tărtăria e a cultura Vinča.


Foi um incómodo, para quem se irrita com o protagonismo da cultura europeia, a descoberta em 1961 na Roménia de três placazitas de barro cru com inscrições misturando símbolos e desenhos, que vieram a revelar, pela datação de Carbono 14, a linda idade de uns 7500 anos: datam de 5500-5300 A.C.. A ser verdade, pode arrasar com a crença estabelecida de que a escrita começou em terras orientais - Mesopotâmia ou China.

As três 'Tábulas de Tărtăria', no Museu de História da Transilvânia, em Cluj.

A região balcânica próxima do Danúbio era habitada durante o Neolítico médio e final (6º ao 3º milénio A.C.), conforme comprovaram escavações arqueológicas de povoados dessa época; essa ocupação humana, designada cultura Vinča, é a mais antiga da Europa. Foi descoberta por um arqueólogo sérvio, Vasić, em 1908, numa escavação perto de Belgrado. A aldeia de Tărtăria, na Roménia, era um desses povoados Vinča.

Território da cultura neolítica Vinča, centrado na Transilvânia.

Desde - 5000 da nossa era, essas tribos foram provavelmente sendo dizimadas ou absorvidas pelas migrações nórdicas em fuga das glaciações periódicas; estudos arqueológicos confirmam estas migrações de Norte para o Sul e Leste da Europa.

As tábulas foram encontradas na aldeia de Tărtăria, perto da cidade romena de Alba Iulia, que foi uma importante cidade da Dácia na Grécia Antiga (Apulon) e que depois foi estratégica para Roma (Apulum - foi 'castrum' da 13ª legião romana) e chegou até capital regional da Transilvânia húngara em 1540; desde então floresceu, com uma academia e uma biblioteca, e com o marco arquitectónico que foi a fortaleza Vauban em torno da cidadela alta, neoclássica, no séc XVIII. Seguindo aproximadamente o castro romano, lembra um Kremlin:


Mas estou a divagar. Voltando às tábulas:

As inscrições em barro arenoso das tribos neolíticas do Danúbio seriam portanto uma proto-escrita em pictogramas anterior à escrita cuneiforme na Suméria ou dos hieróglifos egípcios, dois milénios anterior mesmo à escrita pictográfica proto-suméria de Uruk; seriam contemporâneas, isso sim, da lendária Eridu, dita a mais antiga cidade do mundo, fundada em 5400 A.C..

É o que defende Harald Haarmann, linguista alemão (testemunho em vídeo, link no final do post).

Se houver erro na datação, contudo, as placas podem ter sido deixadas em Alba Iulia mais tarde, numa das vagas migratórias que atravessaram a Anatólia e a Síria. E mesmo com a datação correcta, não há acordo quanto aos pictogramas serem apenas precursores ou já uma forma de escrita como a suméria.

Desenhos (cabra, árvore ou ramo) mas também traços, rodas, meias-luas, cruzes, >>, organizados em quadrantes ou em colunas. Se não é um texto, será ao menos um registo simbólico muito evoluído para o Neolítico.

O debate e a controvérsia continuam, com posições enquistadas. Os orientalistas dizem que se trata de um Oopart (out-of-place artifact), ou seja, um objecto que foi ali depositado posteriormente, e semelhante a outros encontrados na Mesopotâmia com pictogramas pré-cuneiformes. Isto implica rejeitar a datação por Carbono 14, o que se compreende: as três placas, arenosas, sujas e húmidas, foram 'cozidas' no forno do museu com a boa intenção de as preservar em condições; infelizmente, o processo tornou impossível o recurso à técnica de datação directa por Carbono 14, que foi aplicada a todos os outros artefactos de barro encontrados na mesma jazida, na mesma data. Mas não se pode inferir que por estarem juntos tenham a mesma idade...

A Roménia e outros povos vizinhos do Danúbio, pelo contrário, reivindicaram para a zona da Dácia o nascimento da escrita, e lá está um monumento a sinalizar o local dos achados.

Monumento em Tărtăria: "A primeira mensagem escrita da História da Humanidade", de 2004. Propaganda ?

É engraçado (ou se preferirem é triste, muito triste) como estas posições são políticas, tal como aliás as que defendem ou atacam o nosso Acordo Ortográfico: as línguas passaram a ser propriedade política de interesses nacionais ou regionais, e a 'verdade' histórica, linguística ou etimológica, 'não existe' - é, como dizem, relativa e culturalmente enviesada. Relativos e enviesados, e em maior escala, são os interesses políticos, mas enfim.

Muitos outros pedacinhos de terracota com inscrições têm sido encontrados na bacia do Danúbio - Hungria, Sérvia, Roménia, Bulgária. Sendo alguns mais recentes - cerca de 4000 A.C - comprovam a existência de notações simbólicas simples anteriores à escrita cuneiforme, pois não se encontrou nenhum 'texto'; apenas pictogramas isolados, um em cada placa. Uma forma primitiva que parece provar, pelo menos, que a escrita surgiu independentemente em vários locais - China, Mesopotâmia e sudeste da Europa. Alguns teóricos do 'contra' ainda contrapõem que se trata de pictogramas aleatórios, que apenas denotam propriedade, hipótese desacreditada porque símbolos idênticos têm sido encontrados em locais do território Vinča muito afastados uns dos outros.

A tábula mais enigmática.

O amuleto (?) circular: é verosímil a hipótese de estes símbolos representarem números, mas de quê ? conteúdo de vasos ? contagem de bens ? ou do tempo (agricultura, festas religiosas) ? 


O berço europeu da escrita e da cultura.


Sítios que valem a pena:

1. História e Cultura Romena
http://www.romanianhistoryandculture.com/theeuropeancradle.htm
2. Harald Haarmann
https://www.youtube.com/watch?v=H9-o9sA9tLE
3. Scientific American (pago)
http://www.scientificamerican.com/article/the-tartaria-tablets/

Nota: o artigo na pt.Wikipedia é de evitar, os erros abundam.

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