Steven Pinker é um psicólogo, linguista e pensador actualmente na Universidade de Harvard, depois de ter sido professor no M.I.T. na área do Cérebro e Ciências Cognitivas. Já é muito conhecido pelos seus estudos sobre o pensamento, a linguagem e a violência nas sociedades. Isto para que, mesmo discordando dele, se perceba que não é um falabarato qualquer.
Li há pouco (Julho) uma sua entrevista ao Le Point, onde verifico com surpresa que o que ele diz sobre a violência, o progresso e e as sociedades vem muito ao encontro do que eu sempre pensei e até já aqui escrevi: que os tempos que vivemos são (numa escala de ~ 50 a 100 anos) os melhores de sempre, coisa que quase ninguém aceita. Ou se preferirem, que todos os tempos passados foram bem piores que o presente em termos do bem estar global. Essa visão é optimista no sentido em que permite prever um futuro melhor, e não as catástrofes que está na moda anunciar nos media e em certos meios políticos. Anunciar catástrofes sempre rendeu votos de medo e submissão a tiranias.
Deixo aqui extractos dessa entrevista.
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Steven Pinker: e contudo a violência está a diminuir...
Entrevista ao Le Point de 21 de Julho de 2016
Le Point : Porque é tão difícil acreditar, apesar de todas as estatísticas publicadas no seu livro, que vivemos o período mais pacífico da História ?
Steven Pinker : Os jornalista, e em geral os seus leitores, são vulneráveis a uma ideia falsa: " Se eu li hoje de manhã na imprensa, é porque é uma tendência histórica". Não vão procurar nos arquivos se esses acontecimentos eram mais frequentes no passado. No meu livro, situei as estatísticas de violência no tempo, e mostrei que em todas as categorias - guerras, genocídios, homicídios, violações, tortura, pena de morte, violência contra mulheres e crianças - esses números são mais baixos hoje do que foram no passado.
L.P. : A culpa é dos media ? Deveríamos concentrar-nos menos nos crimes e no terrorismo ?
S.P. : Os media, certamente, merecem a nossa gratidão por aumentar a nossa sensibilidade aos sofrimentos do mundo. Mas muitos jornalistas têm maus hábitos. Esquecem a História, não recordando qual era o estado de terrorismo e guerras civis nos anos 70. E não têm um pensamento quantitativo. Cobrem a explosão de uma bomba pela manhã, mas ignoram as grandes forças que se vão desenrolando ao longo de anos. Acabam por ser explorados por empresários da violência como são os terroristas e os assassinos em massa, que sabem que ficarão instantaneamente célebres matando gente inocente.
L.P. : Apesar de duas guerras mundiais (80 milhões de vítimas) e vários genocídios, o século XX não seria o século mais violento da História. Isso precisa de ser explicado.
S.P. : A verdade é que não sabemos que século foi o pior, porque não temos dados da mesma qualidade hoje e na antiguidade. Mas sabemos que houve situações que dizimaram uma proporção da população comparável à das duas guerras: a queda de Roma, as invasões de Gengis Khan e Tamerlão, o prolongado comércio dos escravos, a queda das dinastias chinesas.
L.P. : A múmia Ötzi ou o homem pré-histórico de Kennewick teriam sido vítimas de agressões. Isso prova que Jean-Jacques Rousseau ia pelo caminho errado com o seu 'bom selvagem' ?
S. P. : São só dois exemplos, claro. Mas os dados arqueológicos e os estudos etnográficos sobre os caçadores - recolectores mostram que Rousseau se enganou muito sobre a vida antes da civilização. As taxas de mortalidade por pilhagens ou escaramuças são bem mais elevadas nas sociedades tribais que nas sociedades modernas.
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Outras declarações mais detalhadas de Steven Pinker foram as que prestou ao site de conferências TED talks em 2007. Excertos:
Durante o século XX, assistimos às atrocidades de Estaline, Hitler, Mao, Pol Pot, no Ruanda e outros genocídios; e mesmo que o século XXI só tenha 7 anos, já vimos um genocídio no Darfur e horrores quotidianos no Iraque. Isso leva-nos a compreender mal a situação, pensamos que o progresso nos trouxe uma violênca terrível e que os povoados primitivos viviam num estado de harmonia que se perdeu.
Um exemplo disso foi publicado no Boston Globe há alguns anos: "A vida dos Índios da América era difícil mas não tinha problemas de desemprego, a comunidade vivia em harmonia, não havia abuso de drogas, nem crimes, e as únicas guerras eram inter-tribais, eram sobretudo rituais que só raramente se transformavam em massacres".
Viajemos no tempo em diferentes escalas -- desde milénio até ao ano -- a ver se vos consigo convencer. Até há 10 000 anos, todos os homens viviam da caça e das colheitas, sem casa permanente nem governo. E considera-se esse estado como de harmonia original. Mas o arqueólogo Lawrence Keeley, que estudou as taxas de mortalidade das tribos contemporâneas de caçadores-recolectores - que são a nossa melhor fonte de dados sobre essa maneira de viver - tirou uma conclusão bem diferente.
Aqui está o gráfico que ele elaborou, que mostra a percentagem de mortes masculinas devidas à guerra num certo número de tribos. As barras vermelhas mostram a probabilidade de que um homem seja morto por outro homem, em lugar de morrer de causas naturais, em diferentes sociedades na Nova-Guiné e na floresta amazónica. Vão desde uma taxa de quase 60% até, no caso dos Gebusis, só 15%. A pequena barra azul em baixo à esquerda mostra a mesma estatística nos Estados Unidos ou na Europa no século XX, incluindo os mortos das duas guerras mundiais. Se a taxa das guerras tribais se tivesse mantido haveria 2 mil milhões de mortos em vez de 100 milhões.
Passemos à escala do milénio. Podem-se estudar os modos de vida das primeiras civilizações tal como a Bíblia as descreve. E no texto que é costume ser citado como fonte dos nossos valores morais, há descrições do que eram as guerras, como neste extracto de Números 31: "Avançaram contra Madian, segundo a ordem que o Eterno tinha dado a Moisés; e mataram todos os machos. E Moisés disse-lhes : "Deixaram vivas todas as mulheres ? Agora, matem todos os machos entre as crianças e todas as mulheres que já conheceram homem dormindo com ele; mas deixem viver todas as meninas que não conheceram leito de homem." Noutros termos, matem os homens, matem as crianças, e se houver raparigas virgens podem poupá-las para as violar. Há mais quatro ou cinco passagens na Bíblia deste calibre. Também na Bíblia, a pena de morte era a punição habitual para a homossexualidade, o adultério, a blasfémia, a idolatria, o facto de responder aos pais (!) e apanhar lenha durante o Sabbat !
Avancemos agora à escala do século. Não há estatísticas sobre as guerras entre a Idade Média e a modernidade, mas sabemos da História que houve uma redução das formas de violência aceites pela sociedade. Por exemplo, a História diz-nos que as mutilações e a tortura eram o castigo habitual para os criminosos. E o género de infracção que hoje poderia dar multa levava na Idade Média a língua ou orelhas cortadas, a ser tornado cego, ter uma mão cortada, e assim por diante. E havia inúmeras formas de penas capitais sádicas: queimado vivo, estripado, esfolado, passado pelo suplício da roda, ter os cabelos arrancados, etc.. E a pena de morte era o castigo para muitos crimes não violentos: criticar o Rei, roubar um pedaço de pão. A escravatura, claro, era o método favorito para economizar na mão-de-obra, e a crueldade uma forma de divertimento popular. O exemplo mais eloquente é o costume de queimar gatos, em que o animal era içado sobre um estrado e depois, suspenso de uma cinta, baixado sobre o fogo.
E quanto a assassínios? Disso temos boas estatísticas, porque muitas aldeias e cidades registavam as causas dos óbitos. (...) Numa escala logarítmica desde 100 mortos por 100 000 habitantes (que era grosso modo a taxa de homicídios na Idade Média) a taxa cai para 1 homicídio por 100 000 pessoas e por ano em 7 ou 8 países europeus. Há um ligeiro aumento nos anos 60. Mas desde a Idade Média até hoje houve uma queda de um factor de 100, e o ponto de viragem foi no século XVI.
Vejamos à escala do decénio. Segundo organizações não governamentais que guardam este género de estatísticas, desde 1945 na Europea e nas Américas houve uma queda rápida de guerras entre estados, golpes militares, levantamentos étnicos.
Neste gráfico as barras amarelas mostram o número de mortos por guerra e por ano desde 1950 até hoje. A taxa de mortalidade cai de 65 000 mortes por conflito cada ano na década de 1950, até 2 000 por conflito e ano no decénio actual (2010).
Mesmo na escala anual há diminuição de violência. Desde o fim da guerra fria, há menos guerras civis, menos genocídios - uma reduçaõ de 90% após os números elevados da Segunda Grande Guerra - e mesmo uma inversão do pico já referido nos anos 60 em relação a crimes violentos. Isso segundo as estatísticas criminais do FBI: pode-se observar uma taxa de violência baixa nos anos 50 e 60, depois um forte aumento durante alguns decénios, depois uma forte baixa desde os anos 90.
A terminar, Steven deixa uma certeira alfinetada:
"ninguém alguma vez conseguiu atrair observadores, defensores e patrocinadores dizendo "as coisas vão cada vez melhor."
Um exemplo disso foi publicado no Boston Globe há alguns anos: "A vida dos Índios da América era difícil mas não tinha problemas de desemprego, a comunidade vivia em harmonia, não havia abuso de drogas, nem crimes, e as únicas guerras eram inter-tribais, eram sobretudo rituais que só raramente se transformavam em massacres".
Viajemos no tempo em diferentes escalas -- desde milénio até ao ano -- a ver se vos consigo convencer. Até há 10 000 anos, todos os homens viviam da caça e das colheitas, sem casa permanente nem governo. E considera-se esse estado como de harmonia original. Mas o arqueólogo Lawrence Keeley, que estudou as taxas de mortalidade das tribos contemporâneas de caçadores-recolectores - que são a nossa melhor fonte de dados sobre essa maneira de viver - tirou uma conclusão bem diferente.
Aqui está o gráfico que ele elaborou, que mostra a percentagem de mortes masculinas devidas à guerra num certo número de tribos. As barras vermelhas mostram a probabilidade de que um homem seja morto por outro homem, em lugar de morrer de causas naturais, em diferentes sociedades na Nova-Guiné e na floresta amazónica. Vão desde uma taxa de quase 60% até, no caso dos Gebusis, só 15%. A pequena barra azul em baixo à esquerda mostra a mesma estatística nos Estados Unidos ou na Europa no século XX, incluindo os mortos das duas guerras mundiais. Se a taxa das guerras tribais se tivesse mantido haveria 2 mil milhões de mortos em vez de 100 milhões.
Passemos à escala do milénio. Podem-se estudar os modos de vida das primeiras civilizações tal como a Bíblia as descreve. E no texto que é costume ser citado como fonte dos nossos valores morais, há descrições do que eram as guerras, como neste extracto de Números 31: "Avançaram contra Madian, segundo a ordem que o Eterno tinha dado a Moisés; e mataram todos os machos. E Moisés disse-lhes : "Deixaram vivas todas as mulheres ? Agora, matem todos os machos entre as crianças e todas as mulheres que já conheceram homem dormindo com ele; mas deixem viver todas as meninas que não conheceram leito de homem." Noutros termos, matem os homens, matem as crianças, e se houver raparigas virgens podem poupá-las para as violar. Há mais quatro ou cinco passagens na Bíblia deste calibre. Também na Bíblia, a pena de morte era a punição habitual para a homossexualidade, o adultério, a blasfémia, a idolatria, o facto de responder aos pais (!) e apanhar lenha durante o Sabbat !
Avancemos agora à escala do século. Não há estatísticas sobre as guerras entre a Idade Média e a modernidade, mas sabemos da História que houve uma redução das formas de violência aceites pela sociedade. Por exemplo, a História diz-nos que as mutilações e a tortura eram o castigo habitual para os criminosos. E o género de infracção que hoje poderia dar multa levava na Idade Média a língua ou orelhas cortadas, a ser tornado cego, ter uma mão cortada, e assim por diante. E havia inúmeras formas de penas capitais sádicas: queimado vivo, estripado, esfolado, passado pelo suplício da roda, ter os cabelos arrancados, etc.. E a pena de morte era o castigo para muitos crimes não violentos: criticar o Rei, roubar um pedaço de pão. A escravatura, claro, era o método favorito para economizar na mão-de-obra, e a crueldade uma forma de divertimento popular. O exemplo mais eloquente é o costume de queimar gatos, em que o animal era içado sobre um estrado e depois, suspenso de uma cinta, baixado sobre o fogo.
E quanto a assassínios? Disso temos boas estatísticas, porque muitas aldeias e cidades registavam as causas dos óbitos. (...) Numa escala logarítmica desde 100 mortos por 100 000 habitantes (que era grosso modo a taxa de homicídios na Idade Média) a taxa cai para 1 homicídio por 100 000 pessoas e por ano em 7 ou 8 países europeus. Há um ligeiro aumento nos anos 60. Mas desde a Idade Média até hoje houve uma queda de um factor de 100, e o ponto de viragem foi no século XVI.
Vejamos à escala do decénio. Segundo organizações não governamentais que guardam este género de estatísticas, desde 1945 na Europea e nas Américas houve uma queda rápida de guerras entre estados, golpes militares, levantamentos étnicos.
Neste gráfico as barras amarelas mostram o número de mortos por guerra e por ano desde 1950 até hoje. A taxa de mortalidade cai de 65 000 mortes por conflito cada ano na década de 1950, até 2 000 por conflito e ano no decénio actual (2010).
Mesmo na escala anual há diminuição de violência. Desde o fim da guerra fria, há menos guerras civis, menos genocídios - uma reduçaõ de 90% após os números elevados da Segunda Grande Guerra - e mesmo uma inversão do pico já referido nos anos 60 em relação a crimes violentos. Isso segundo as estatísticas criminais do FBI: pode-se observar uma taxa de violência baixa nos anos 50 e 60, depois um forte aumento durante alguns decénios, depois uma forte baixa desde os anos 90.
A terminar, Steven deixa uma certeira alfinetada:
"ninguém alguma vez conseguiu atrair observadores, defensores e patrocinadores dizendo "as coisas vão cada vez melhor."
Vídeo da conferência de Steven Pinker no TED talks, 2007:
https://www.ted.com/talks/steven_pinker_on_the_myth_of_violence?language=fr
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P.S. : soube agora que a guerrilha das FARC na Colômbia provocou 260 000 mortos nos últimos 50 anos antes das tréguas. Isso é uma enormidade ! Não só terminou agora, parece, como não tem comparação com o número de vítimas nos conflitos das últimas décadas no Médio Oriente, ou de atentados na Europa, relativamente (só relativamente!) diminuto.
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P.S. : soube agora que a guerrilha das FARC na Colômbia provocou 260 000 mortos nos últimos 50 anos antes das tréguas. Isso é uma enormidade ! Não só terminou agora, parece, como não tem comparação com o número de vítimas nos conflitos das últimas décadas no Médio Oriente, ou de atentados na Europa, relativamente (só relativamente!) diminuto.
2 comentários:
O problema não está nos números nem nas estatísticas. Mortes e extrema violência em caso de conflitos sempre houve e também julgo que vivemos tempos mais pacíficos. O que me parece novidade no século XX são os genocídios em massa em tempo de paz. O holocausto não é uma consequência da guerra. Os regimes ditatoriais do século XX massacraram populações em tempo de paz. E as suas próprias populações. Isso é que julgo não era visto. Isso sim, é perturbante.
É sim, sem dúvida. Os piores massacres têm sido dos regimes de Estado contra parte do seu povo. As vítimas de conflito entre Estados são cada vez menos - também porque já não usam exércitos com infantaria atirada para os canhóes.
Mas o que Pinker quer combater é uma ideia generalizada de que este tempo é de mais violência que no passado, medindo essa violência por número de vítimas relativizado. Mesmo os genocídios do século XX estão algo longe da mortandade das permanentes guerras de séculos anteriores, e são mais localizados.
Resta esperar que essa prática desgraçada esteja em recuo. Desde a década de 70, pelo menos, não houve massacres dessa dimensão.
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