quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Anna Bolena no São Carlos: bravo !


Tinha lido textos desde o mais negativo - Jorge Calado, arrasador - ao mais positivo -  no Público, Pedro Boléo a dar **** - sobre a produção de Anna Bolena, a ópera de Donizetti, que esteve no São Carlos. Fui ver, no último dia. Por fraca que seja, pensei, a cenografia é de Graham Vick, para a Arena de Verona, e Elena Mosuc tem uma carreira meritória... Arrisquei.

Detesto, como já várias vezes disse, aquelas encenações modernas que situam a música num contexto disparatado, tipo roupa interior, ou homens de jeans e metralhadora, ou concurso de TV, que preferem uma estética de fealdade chocante e polémica a uma figuração consentânea com a época em que a trama se desenrola. Foi o caso da horrenda Manon Lescaut recentemente em Londres.

Pois desta vez gostei, gostei das opções de Graham Vick, mesmo que às vezes mal adaptadas ao palco do São Carlos. Combinou materiais e estética modernos, mas dentro do sóbrio - vidros,  cortinas, fundo preto e plataformas avermelhadas - com roupas sumptuosas, sedas bordadas, brancas ou coloridas, próprias de uma corte do século XV. A iluminação tirou partido das transparências e sombras.

No São Carlos, Leonardo Cortellazzi foi um Percy convincente.

O contraste entre o fundo minimalista do cenário com os figurinos é esteticamente agradável, e acentua o contraste entre a bruteza do fundo das manobras reais e a dor e humilhação inflingidas às mulheres, a Anna sobretudo; mas a encenação de Vick tem a virtude de não "diabolizar" Henrique nem "angelizar" as damas: mostra uns e outros como duplamente vítimas e culpados, embora com sortes diferentes.

Henrique VIII e a sua justiça entre Percy e Anna: quem é inocente, quem é culpado? plataformas que se cruzam...

As tonalidades de vermelho e negro parecem uma escolha adequada que resulta em favor da dramatização. Só me irritou o despejar de confettis despropositado, a imitar neve, e a cena de caça com o casal real a cavalo, num 'kitsch' demasiado estático.

Nunca antes tinha visto ao vivo esta ópera, portanto não tenho termo de comparação, a não ser com outras óperas do romantismo italiano.  A música de Donizetti é muito elaborada,  intercalando miniaturas de melodia que não chegam a ser árias na corrente quase contínua do canto. Nada a ver com a melodia contínua, ou infinita, que Wagner inventou para matar de vez a ópera. Esta constante variedade melódica e harmónica ajuda ao agrado imediato - a Anna Bolena fez sucesso na estreia em Milão e logo de seguida por toda a Europa. Há momentos fracos, menos conseguidos, mas não é "aborrecida" como Jorge Calado escreve; pelo contrário, é das mais musicais e teatrais que conheço, ao nível do melhor Rossini. Concedo que não tem senão uma grande ária, daquelas memoráveis para a eternidade, "Al dolce guidami castel natio", que é o clímax da cena de locura de Anna. É uma peça fabulosa, belíssima, e Elena Mosuc esteve muitíssimo bem - prostrada no chão, cantou como uma diva para nossa comoção e grande aplauso. Foi mesmo inesquecível, quer o canto, quer a presença, quer o cenário, com um vidro estilhaçado por trás, ideia de génio para simbolizar o estilhaçar dos sonhos (de Anna) e da moral cortesã - Henrique e Jane Seymour também aparecem a casar nos estilhaços. Muito bom.

Com uma musicalidade destas, que teatralidade ? Foi um ar que lhe deu: a movimentação e gestualização, a coreografia enfim, foi de uma pobreza franciscana, os protagonistas cantores ficaram quase sempre estáticos e impassíveis nos seus papéis. A excepção mais meritória foi o pajem e harpista Smeton (Lilly Jørstad) que também mostrou uma bela voz de meio-soprano e foi a maior surpresa, e ainda o tenor Leonardo Cortellazi que, sem deslumbrar, esteve sempre à altura de forma entusiástica e ajudou a dar muita vida a Percy. Estes três formaram quanto a mim uma bela equipa, não de topo, claro, mas quem dera muitas vezes no São Carlos gente a cantar assim, bem melhor do que é hábito.

Sim, Elena Mosuc faz sonhar com a DiDonato ou a Devia, mas quase se equipara a Netrebko - tem um timbre agressivo e abusa do fogo de artifício vocal; felizmente teve momentos de fulgor que me entusiasmaram -  espantoso 'Guidici ! Ad Anna!' - e valeram a noite. Quando se concentra e se refreia, como foi opinado no Fanáticos da Ópera, consegue o seu melhor.

Numa coisa concordo com Jorge Calado: a orquestra esteve muito bem, precisa, incisiva e romântica quanto baste. Talvez de mais, por vezes abafou o canto, mas nada de grave.

Estive uma noite entregue ao destino trágico de personagens históricas, posto em texto e música com alguma sabedoria e muito dramatismo, e encenado com criatividade plástica. Já não é mau de todo. Saí de bem com o São Carlos, por uma vez. Assim está certo, Bieito não.


Em concerto no Lisinsky de Zagreb* (2014) , Elena Mosuc no Al dolce Guidami.


*gravação de má qualidade, é o que há.

1 comentário:

Fanático_Um disse...

Mário, obrigado pela referência e pelo seu magnífico texto. Ainda bem que gostou. Foi muito melhor que a Manon Lescaut de Londres, totalmente de acordo.