quarta-feira, 30 de maio de 2018

"Le grand navire", de Vieira da Silva, visto pela primeira vez !


É com espanto que se descobre uma obra-prima nunca vista de Helena Veira da Silva. Como é possível que estivesse "escondida" no BES só para desfrute de meia dúzia de energúmenos ? Esta treta do mercado da Arte bem merece uma regulação apertada do Estado. Está felizmente agora no lindo Museu da Praça das Amoreiras.

É uma obra de 1966, em tons claros onde predominam matizes de azul e bege, e uma malha de pequenos quadrados ou rectângulos, subitamente rasgados pelas linhas diagonais ou curvas da frente e do casco do navio.



Como sempre, mergulhamos numa viagem por espelhos infinitos, ou janelas dentro de janelas, ou microcosmos fractais...



Claro que não deixo de revisitar "Au fur et à mesure", com o seu borgesiano labirinto onde se encontra o infinito dentro de cada corredor, fios que tecem universos... há alguns microquadros dentro do quadro que sempre me intrigaram:

Ali nos quadradinhos do lado esquerdo...

Uma casa ?
Um palacete toscano? Um jardim ?

E o enigmático vulto de arlequim?

------------------------------------------
Ah, mágica Praça da Amoreiras.


domingo, 27 de maio de 2018

Entre Guerra e Paz, a obscura luminosidade de Joyce DiDonato


A tournée de "In War And Peace", um recital barroco de Joyce DiDonato com a orquestra Il pomo d'Oro, vai já na 3ª rodada pela Europa e Américas; finalmente chegou a a Lisboa (muito depois de Oviedo, onde tentei ir vê-la mas foi-me impossível).

De longe o ponto alto da programação da Gulbenkian para 2018, cedo esgotou, como não podia deixar de ser. Já tudo foi dito sobre a produção e o canto de DiDonato, resta-me dar conta de que estive lá, foi sublime, inevitável e irrepetível - mas nem tudo me agradou, como também era de esperar.

Recebi logo de entrada um envelope assinado pela Joyce a dar conta da mensagem intencional que inspirou a récita - confrontar guerra e paz na arte musical, por um lado, e procurar saber caminhos de superar o caos ameaçador que, pensa ela, paira sobre o mundo. Para isso faz um inquérito, sim!, um inquérito a saber como cada um encontra espaços de paz e conforto nestes dias revoltos. A falar verdadade , boa parte da resposta dá-a ela própria, no concerto (com música!) e na mensagem transmitida no final.

Lá fui escrevendo qualquer coisa como - a escravatura ? acabou; as pestes e as pragas ? acabaram; os gulags e auschwitzs ? acabaram; portanto as três mais diabólicas maldições da humanidade foram ultrapassadas, e foi a Humanidade que as conseguiu debelar. Não será razão para confiar que mais maldições tenham também os dias contados ? O verdadeiro problema está em saber se há sempre novas maldições no horizonte à espera do momento próprio. Pelo menos, nos intervalos, que haja música, muita Música.

Iniciando com as terríveis "Scenes of horror, scenes of woe" da ópera Jephta de Händel, que nos pôs em contexto, Joyce começou de facto com o genial "Lamento de Dido" de Purcell, que nunca ninguém cantou melhor. O discreto mas muito requintado acompanhamento do Pomo d'Oro ajudou. Voltamos à angústia mais desesperada com Händel na ária de Agrippina, "Pensieri, voi mi tormentate". Joyce DiDonato tem uma expressão corporal de verdadeira actriz, e era mesmo chocante ouvir e ver a que ponto estava atormentada pelos pensamentos, a voz áspera correndo aos extremos da escala com um domínio inacreditável. Mas foi o final "Lascia ch'io pianga" que mais me arrebatou. Joyce cantou a ária deitada/sentada no chão do palco, com uma contenção, uma concentração, uma emoção de arrepiar. Não foi apenas "cantar uma ária", como num recital qualquer; foi todo um programa, teatro, canto, coreografia, música, iluminação... inesquecível.

A segunda parte, já sob o tema da paz, foi mais levezinha e bonita, no bom sentido. "Crystal Streams in Murmurs flowing" de Händel é muito bucólica, e o "Da Pacem, Domine" de Arvo Pärt surgiu como um interlúdio orquestral a introduzir uma paz interior, sobre um cenário projectado de uma capela na obscuridade  por onde entram fragmentos da luz do sol; entretanto as (por vezes estranhas) projecções no écran de fundo foram substituídas pela vista dos jardins da Fundação através de vidro semi-transparente, um fundo de verdura  a que já estamos habituados - mas nunca cansa. E com esse cenário tivemos o alegre dueto para canto e flauta "Augeletti, che cantate", Händel mais uma vez, e o celebratório "Dopo Notte" para nos levar a bom porto:

Dopo notte, atra e funesta,
splende in Ciel più vago il sole,
e di gioja empie la terra;

Mentre in orrida tempesta
il mio legno è quasi assorto,
giunge in porto, e'llido afferra
.

                            Depois da noite, sombria e funesta
                            No céu resplandece mais vivo o Sol
                            E enche a Terra de alegria.

                            Enquanto numa horrível tempestade
                            O meu barco quase naufragou,
                            Entra agora no porto e acosta ao cais.


Seguiu-se o discurso socio-ético-politico de Joyce, e sempre tivemos um encore, um só, mas foi, imagine-se, a canção 'Morgen' de Strauss. Modernidade e intensa interioridade para um final perfeito.

Volta sempre, Joyce DiDonato. E já agora, vem ao Porto, vem à Casa da Música que é uma boa sala de concertos e sabe receber graças quase divinas como a tua.

-----------------------
Não gostei: da maquilhagem feia e gore que Joyce usou em todo o concerto; e de um bailarino que andou por lá a fazer umas "fosquinhas", como se diz na minha terra.



quarta-feira, 23 de maio de 2018

Gosta de violoncelo ? Anner Bylsma traz o séc. XVII até si.


Depois de assistir ao 'War and Peace' de Joyce DiDonato na Gulbenkian, a ser relatado para a semana.
---------------------------------

Preciosidades, discos para um ilha deserta, incontornáveis ou obras de referência, são felizmente bem mais do que uma mão-cheia: esgotam várias prateleiras.

Cá está mais um. A-d-o-r-o, apetece dizer. A leveza inventiva dos senhores Gabrieli, Frescobaldi, Jacchini, o violoncelo barroco teso, saltitante e exímio de Anner Bylsma... Como seria estar num salão da nobreza italiana, no século XVII, a assistir a um concerto destes? Todos aqueles enfatuados e postiços aristocratas concentrados e deliciados, a apreciar? Não me parece. Todos a falar, sem dar atenção à música? Criminosos, para a fogueira. Ou só assistiam uns poucos nobres melómanos, com as suas damas?

Anthonie Palamedesz, Festa Musical

Nem faziam a mínima ideia de como é eterna a beleza destas obras, e como quatro séculos depois as apreciaríamos ainda em todo o seu esplendor, mas em nossa casa, emitidas por umas caixas mágicas cheiras de fios.


Giuseppe Maria Jacchini : Sonata op.3-9


Giovanni Gabrieli : Ricercar V .


Giovanni Gabrieli : Sonata em La.


Mais:
https://www.youtube.com/results?search_query=fukax3+bylsma

sexta-feira, 18 de maio de 2018

Elogio do silêncio (mas não o four-thirty-three de Cage)


Vivo imerso em ruído, a poluição sonora é mais insidiosa e deprimente que a sujidade no ar ou na água. O ruído é obra do homem, claro, que só produz silêncio como rara excepção, nas catedrais e nas bibliotecas.

Imagino um planeta desabitado, pode ser há 500 000 ou daqui a 500 000 anos. Um silêncio quase absoluto, pontuado pelo canto das aves, o vento na folhagem ou a chuva que cai sobre o lago - que são formas sonoras de silêncio. Haverá ruído de longe a longe, um trovão, o ranger do glaciar na moreia, uma alcateia que uiva. São só curtos intervalos de som, nada desta permanente gritaria urbana, social, televisiva. Preciso de um silêncio assim, permanecente - ele virá um dia em definitivo, bem sei, mas preciso agora de viver com silêncio.

Calem-se, por favor. Encerrem o festival. Desliguem tudo, motores e écrans e campaínhas. Mozart só um pouquinho, de longe a longe, pianíssimo. Quero a Terra-mãe solteira de nós.

E não façam do silêncio uma forma arrogante e perniciosa de ruído, como fez John Cage com a 'obra' que quer fazer passar 4' 33'' de um nada fundamentalista como obra artística. Para lixo, já basta o barulho do dia-a-dia.

Um poema de Grace Wells:

                                  In the Museum of Silence

                                  For the full effect we encourage
                                  you first hear its opposite -
                                  in this room are the drawers of sound.

                                  Highway traffic. The demands
                                  of children. A rock festival.
                                  A prison wing.

                                  Through the double doors
                                  you'll find the hush
                                  that falls with snow.

                                  Upstairs we have replicated 
                                  the British Library
                                  and a Spanish cathedral.

                                  And the exhibition progresses
                                  you'll hear the different qualities
                                  of silence, its range of depths.

                                  Our archive has recordings
                                  from across the globe:
                                  Arctic quiet from Baffin, the scorched Sahara.

                                  We gave samples from below the ocean
                                  and from caves within the earth.
                                  And from outer space.

                                  Our final chamber is wired straight
                                  to the Himalayas. We recommend
                                  you lie downin there and listen.

                                  Visitors can sign the guestbook
                                  before they leave.

in Dark Mountain, vol. 6




segunda-feira, 14 de maio de 2018

'Canção de Maio', por Goethe, Beethoven, Schreier e Mattila.


Maigesang (ou Mailied), a 'Canção de Maio', é um dos Goethe Lieder que Beethoven compôs em Praga.

As canções de Beethoven têm sido menorizadas e quase ignoradas desde a sua publicação. Maigesang foi uma das suas primeiras experiências no género voval solista; publicada em 1805 como Opus 52, tudo indica que tinha sido composta por volta de 1795.

Beethoven vai buscar o poema a Goethe, e compõe uma melodia simples onde faz respirar a beleza primaveril e o enlevo romântico através da textura saltitante e alegre do piano.

Peter Schreier, tenor


Wie herrlich leuchtet
Mir die Natur!
Wie glänzt die Sonne!
Wie lacht die Flur!
...
                                          Como luz esplendorosa
                                          sobre mim a Natureza !
                                          Como briha o Sol !
                                          Como riem os Campos !


A antítese outonal, em tom melancólico, é dada noutro lied, Wonne der Wehmut (abençoada tristeza) sobre o fim das ilusões amorosas... belíssimo na voz de

Karita Mattila, soprano



Trocknet nicht, trocknet nicht,
Tränen der ewigen Liebe!
Ach, nur dem halbgetrockneten Auge
Wie öde, wie tot die Welt ihm erscheint!
Trocknet nicht, trocknet nicht,
Tränen unglücklicher Liebe!
     
                    Não vos quero secas, não vos quero secas,
                    Lágrimas do Amor eterno!
                    Ah, só a Olhos meio enxutos
                    O Mundo parece tão desolado e morto !
                    Não vos quero secas, não vos quero secas,
                    Lágrimas de desgraçado Amor !



Fischer-Dieskau, Peter Schreier e Olaf Bär cantaram as melhores gravações disponíveis; talvez Bär seja o mais consistente e irrepreensível, com Geoffrey Parsons no piano, é o meu CD favorito:



No Youtube estão disponíveis outras versões:

Fischer-Dieskau, op.52, nº4 Mailied
Fischer-Dieskau, op.83, nº1 Wonne der Wehmut
Hermann Prey, op.83, nº1 Wonne der Wehmut



sexta-feira, 11 de maio de 2018

Beethoven com bandolim para divertir a condessa Josephine


O lado brincalhão de Beethoven é raro e raramente interpretado em palco. Refiro-me mais em concreto às sonatas e adagios para bandolim e cravo, WoO 43 (I e II) e WoO 44 (I e II), que ele terá escrito para a condessa Josephine de Clary, que conheceu em Praga, em 1796. São obras simples e leves mas que Beethoven condimentou com algum pormenor, realçando as cores do bandolim que voltara a estar na moda sobretudo entre o público feminino. Josephine organizava nos seus salões concertos que se tornaram muito frequentados.

Sonatina for Mandolin and Harpsichord, WoO 44a


Desarmante, não é ?

A "Signora Comtessa di Clari", a quem Beethoven dedicou também a ária para soprano "Ah, Perfido!", viria a casar Josephine von Clam-Gallas, e foi na biblioteca do marido que se encontrou o manuscrito das invulgares quatro obras para mandolino. São tão raramente tocadas em público que não resisto a deixar outra aqui:

Andante con variazioni for mandolin and harpsichord WoO 44b
A. Sariel e M. Tsalka



Há quem defenda a hipótese de também os Goethe-lieder terem sido escritos para Josephine de Clary; o manuscrito é em papel idêntico. Mas isso já é coisa 'séria'...

domingo, 6 de maio de 2018

A jornada do Vega à descoberta da rota do Nordeste (II) - invernagem e sucesso

[continuação]
A expedição do Vega conseguiu alcançar a baía de Kolyuchin Bay no Mar de Chukchi, mas acabou por ser ali bloqueada pelo gelo a 28 de Setembro. Ancorados a uma milha da costa, tiveram a sorte de ficar muito perto de uma pequena aldeia Chukchi, onde tinham apoio em terra - trenós, cães, caçadores e ... visitas sociais !
--------------------------------------------


A Invernagem do Vega em Kolyuchin
174º 22' E,
Mar de Chukchi


Nordenskjöld soube logo que não haveria melhoria nas condições até ao Verão, por isso começou os preparativos para passar o Inverno no mar ártico.

O Vega ancorado num bloco de gelo.

O território costeiro era de tundra gelada, desolado e monótono, mas não desabitado. As oito tendas de Pitlekay (Pitlekaj, Pilgykey) ficavam a curta distância, e havia logo depois mais povoações como Neshkan a 172º 58' W, e Uelen mais a nascente, a um dia de viagem. Os habitantes foram sempre amigáveis e cooperantes.

Neshkan (Najtskaj)

Os contactos eram frequentes, com visitas quase diárias ao navio. Para além disso, a tripulação e os especialistas mantiveram-se ocupados com tarefas a bordo e em terra. Um pequeno Observatório foi montado, com a ajuda dos Chukchi, para medir as correntes marinhas, a profundidade e as marés.

O Observatorium

"Faltavam só cento e vinte milhas para atingirmos o objectivo da viagem, que vínhamos perseguindo há dois meses, depois de navegadas 2 400 mihas. Custava-nos habituar à ideia de quão perto estávamos do nosso destino quando fomos obrigados a parar."

A messe dos oficiais durante a invernagem.

Um visita dos Chukchi

As visitas mútuas eram um intercâmbio social frequente que muito ajudou a passar o Inverno.

Barco Chukchi a aproximar-se do Vega.
(Th. Weber)

"Os barcos eram de pele, bem carregados de visitantes nativos ruidosos e galhofeiros, homens, mulheres e crianças, que chamavam a nossa atenção com gritos e gesticulação. O motor era desligado, e um grande número de seres cobertos de peles, mas de cabeça descoberta, subiam a bordo e começavam uma conversa animada. Com enorme alegria recebiam ofertas de uma rodada de tabaco e cachimbos. Nenhum deles falava uma só palavra de russo, tinham estado mais em contacto com baleeiros americanos do que com comerciantes russos."


As roupas eram de pele de rena sobre calças apertadas de pele de foca, sapatos muito elaborados, também de rena com canos de foca e sola de pele de morsa. Com frio intenso, usavam gorros de pele de lobo. As tendas ou cabanas eram aquecidas com a madeira que dá à praia, e muitas vezes estavam nus no interior.

Natal

O Natal foi celebrado com uma árvore feita de ramos amarrados a uma poste, e o tradicional porridge.

Véspera de Natal no Vega

Missão cumprida

Por meados de Abril, ainda sob 40 graus negativos, bandos de gansos e patos e outros pássaros começaram a passar e alguns mesmo a pousar sobre a amurada; mas passou Maio e Junho e o Vega continuava imobilizado no gelo.

Só a 18 de Julho de 1879 é que "finalmente chegou a hora da libertação; flutuámos soltos do nosso fiel bloco de gelo, que nos abraçara durante 294 dias e afinal nos protegera da maior pressão da placa; abriu-se um canal de uma milha de largura. Na beira-mar, os nossos amigos despediam-se, provavelmente choravam e gritavam, como avisaram que fariam assim que o «cão de fogo» os abandonasse."

Embora sob  - 35º C, o Cabo Leste (agora Cabo Dezhnev) no Estreito de Bering foi rapidamente alcançado, completando-se assim a Passagem do Nordeste.

"Navegando próximo da placa de gelo, o Vega  contornou o Cabo Leste, de que apenas tivemos alguns vislumbres através do nevoeiro. A conclusão da Passagem do Nordeste foi celebrada com um grande jantar, e o Vega saudou o Velho e o Novo Mundos desfraldando todas as bandeiras e com uma salva de tiros. Pela primeira vez, desde a primeira tentativa havia 336 anos, a Passagem estava conseguida."

O Vega na Baía Penkigney (ou Konyam) no mar de Bering.

Entrando no Pacífico Norte, o Vega ancorou perto da Ilha de Bering (Nikolskoye) a 14 de Agosto.

Celebrações

O Vega prosseguiu para o Japão, onde ficou uma temporada para repouso e 'férias' da tripulação, contornou a Ásia e passou o canal de Suez, chegando à Suécia em 24 de Abril de 1880, acompanhado por uma multidão de navios embandeirados na entrada do porto de Estocolmo, recebido por fogos de artificio e salvas de canhão que mal se ouviam entre a aclamação de um mar de gente.



----------------------------------

Nordenskiöld descreveu a sua epopeia em várias publicações, em várias línguas, com múltiplos contributos nas áreas de estudo científico que abordara na viagem.

Dos cinco volumes fez ainda uma edição popular resumida em dois volumes.





--------------------------

Notas finais:
1 - não houve prisioneiros, nem se fizeram escravos, nem se criaram colónias.
2 - recolheram-se imensos dados científicos - geologia, clima e oceanografia, fauna e flora, etnologia...
3 - as gravuras foram esboçadas a bordo, e depois mais trabalhadas para o livro de Nordenskiöld.
4 - não deu origem a nenhum canto do tipo "heróis do mar, nobre povo", nem a celebrações saudosistas; e pode, sim, ser genuinamente considerado uma "descoberta", uma vez que a rota era desconhecida de toda a humanidade.
5 - a rota está hoje fechada ao mundo - decorre em águas territoriais da Rússia, muitas vezes junto à costa, e perto de instalações militares, estando dependente de autorização prévia.




quarta-feira, 2 de maio de 2018

Nordenskiöld e a viagem do Vega que abriu a Passagem do Nordeste.


Intervalo nas foto-reportagens turísticas ! Um pouco da história das descobertas maritimas da... Suécia !
---------------------------------------------------------

Com o domínio peninsular da rota à volta de Africa para o Pacífico, as potências marítimas do Norte procuraram intensamente desde finais do séc. XVI rotas alternativas pelo Ártico - a do noroeste, pelo Canadá, e a de nordeste, pela Sibéria. A história das expedições navais por essas duas rotas está recheada de fracassos e de tragédias; mas a viagem do sueco-finlandês Nordenskiöld no veleiro Vega foi um caso de sucesso: em 1879 foi o primeiro a chegar ao Pacífico desde o Atlântico Norte, pela costa siberiana, sem perder uma única vida.  Nordenskiöld relatou a viagem detalhadamente em "The voyage of the Vega round Asia and Europe".

Adolf Erik Nordenskiöld (1832-1901) era um barão finlandês e um proeminente geólogo e mineralogista, descendente de uma família de cientistas. Teve de emigrar para a Suécia porque na época a Finlândia estava sob dominação russa, a que ele se opunha - fora pró-europeu na guerra da Crimeia, liberal e anti-csarista, por isso acabou persona non grata na Universidade de Helsínkia.

Na Suécia foi muito bem acolhido. Como geólogo participou em diversas expedições a Spitsbergen (Svalbard), tendo atingido a latitute 81º 42' N em 1858. Seguiram-se viagens à Gronelândia e ao Ártico Russo em 1867, 1870, 1872 e 1875; nestas expedições foi ganhando a ambição de descobrir a mítica Passagem do Nordeste. Como um novo Viking, tinha o mar e a aventura no sangue, e o apoio do governo norueguês.


O veleiro a vapor "Vega", construido em 1872 como navio baleeiro, foi adquirido para a expedição.


Nos estaleiros de Karlskrona, o Vega foi reforçado para resisitir ao gelo e equipado com um motor mais potente. Outro vapor mais pequeno, o "Lena", iria acompanhar a expedição até ao rio Lena para apoio no abastecimento.

O Lena

As abundantes provisões incluíam carne fumada, café, biscoitos, pemmican (uma conserva de carne enlatada), batatas, sumo de mirtilo e de limão contra o escorbuto. Em Gotemburgo embarcaram trenós, tendas, utensílos e até uma gatinha, a inevitável mascote, que iria ter de se acostumar ao frio do Oceano Ártico.

Com trinta homens a bordo, o Vega partiu em Julho de 1878, depois fez escala em Tromsö para se lhe juntar o Lena; cruzaram o Círculo Ártico e passaram o estreito de Magerøya e o Cabo Norte, a 71º 10' N, no dia 16 de Julho, depois navegaram para o Mar de Kara.

Mar de Kara

A costa sudoeste de Nova Zembla (ou Nova Zemlya) foi alcançada em duas semanas, com um mar totalmente livre de gelo. Nordenskiöld navegou pelo estreto de Kara até ancorar o Vega perto da aldeia nativa de Khabarovo, na península de Yugorsky.


Desde pelo menos o século XII, os comerciantes Pomors já navegavam pelo Mar de Barents e Mar Branco. Entravam regulamente pelo Golfo do rio Ob, contornando a Península de Yamal para colonizar e negociar com os nativos Nenets (ou Samoiedos).

O acampamento Samoiedo em Khabarovo. "Vestiam peles de rena da cabeça aos pés".

Naquela costa desolada e estéril, viram uma pequena capela de madeira; a aldeia e a baía eram desde o séc. XIV uma escala para comerciantes e marinheiros Pomors, e por isso fora construído o modesto templo.


Mas sentia-se uma certa estranheza ao encontrar num sítio destes  baixo-relevos de bronze com as imagens sagradas; à frente de cada uma não faltava uma pequena lamparina de azeite.

No dia 1 de Agosto, o Vega  retomou a rota para oriente, passou a Ilha Branca e o estuário do grande Rio Ob, até chegar à foz do imenso Yenisei em frente à Ilha Dickson. Esta região do Mar Ártico costuma estar livre de gelos devido ao imenso caudal de águas doces descarregado pelos dois rios.


Na Ilha Dickson (Dikson), frente à foz do Yenisei

Os Pomors chamavam-lhe ilha Kuzkin; já tinha sido visitada por Nordenskiöld em 1875, e na altura ele deu-lhe o nome  "Porto Dickson" , tendo registado a sua situação favorável de porto abrigado. Mais tarde, Dikson viria a ser uma dos grandes portos da Rússia no Ártico, local estratégico para a nevagação da rota do Norte.

A expedição chegou a 6 de Agosto. Ancoraram e logo trataram de ir à caça abastecer-se de carne fresca. "Em consequência desse desporto cinegético, vivemos esses dias extravagantemente, a mesa cheia de coxas de rena e perna de urso".

O Vega e o Lena ancorados no gelo na foz do Yenisei.

Barco do Yenisei

Reabastecidos de fresco a partir do porto fluvial de Dudinka, mais a montante no Lena, a expedição retomou viagem; encontraram flocos de gelo dispersos e nevoeiro denso, e muitas pequenas ilhas ainda não mapeadas - um arquipélago que anos depois receberia o nome de Arquipélago Nordenskiöld  ! Depois, como era de prever, as temperaturas baixaram subitamente e as placas de gelo eram mais sólidas e espessas; mas a grande península do Taimyr foi passando entre gelo quebrado costeiro, coisa raramente conseguida. A próxima escala seria o Cabo Chelyuskin, o momento alto de toda a viagem: esse cabo a 77° 44′ N, 104° 15′ E que marca a mais alta latitude continenal eurasiana, está frequentemente inacessível; o canal que o separa das ilhas Severnaya Zemlya (Terra do Norte) gela quase todo o ano.


O Cabo Chelyuskin, latitude máxima da Eurásia continental

Seguiam para Norte imersos em denso nevoeiro, quando a 20 de Agosto "atingimos o nosso maior objectivo, que durante séculos foi objecto de esforços sem sucesso". Pela primeira vez, um navio ancorava no cabo mais mais setentrional do Velho Mundo. Com as cores nacionais a esvoaçar em todos os mastros, saudaram o venerável cabo com a salva sueca de cinco tiros de canhão; o nevoeiro levantou-se e por momentos, e puderam ver um Urso Branco sobre o gelo na costa, "a olhar para os inesperados visitantes com surpresa."

O Vega e o Lena no Cabo Chelyuskin, observados por um urso polar.

Quando mais tarde perguntaram a um membro da expedição de que momento tinha mais orgulho em toda a viagem, respondeu sem hesitar: "Foi quando ancoramos no Cabo Chelyuskin."


Contornado o difícil Taimyr, a próxima etapa apontava em direcção às Novas Ilhas Siberianas; mas o Vega encontrou campos de gelo cada vez mais compactos e nevoeiro cerrado. Tempestades de neve violentas pioraram as coisas, "os mastros cobriram-se de uma crosta de gelo, e subir ao cesto da gávea era tarefa muito árdua."  Foram mesmo forçados a voltar a para trás ao Taimyr e retomar a rota por um estreito canal costeiro ainda navegável, e a 27 de Agosto o Vega alcançou o mítico delta do rio Lena.

O Rio Lena



O Lena descongela as águas frias do Mar de Laptev com a sua enorme descarga, e assim conseguiram continuar sem problemas até às Ilhas da Nova Sibéria (Novosibirskiye) a 141.5° E - baixas, longas, pousadas no oceano polar - e de seguida a Ilha do Urso (Medvezhiy) a 161° 26′ E, que foi ultrapassada a toda a velocidade.

Ilhas Medvezhiy, Mar da Sibéria.

A 3 de Setembro uma forte tempestade de neve e placas de gelo cada vez mais sólidas dificultaram mas não impediram um progresso cuidadoso por um canal costeiro de águas pouca profundas. O nevoeiro também tornava essa navegação mais perigosa.

Depois da foz de mais um grande rio siberiano, o Kolyma, a costa era baixa com longas línguas de areia entre lagoas da tundra e o oceano; tendas da população nómada Chukchi semeavam essas faixas arenosas, e os nativos rodearam o Vega nas suas embarcações mostrando vontade de subir a bordo. Foram recebidos com boas vindas festivas, era a primeira vez que viam um navio !  Expressaram ruidosamente o seu espanto maravilhado.

O litoral de tundra, línguas de areia e lagoas junto ao Kolyma.

Os Chukchi numca foram conquistados ou dominados - mesmo quano os Cossacos estenderam o domínio à Sibéria em 1579, os Chukchi resistiram com bravura no seu cantinho, tal como os bretões de Asterix.

Várias observações ainda foram feitas em terra - notas sobre geologia, fauna e flora, e o modo de vida da população Chukchi, etnia próxima dos esquimós aleutas. Mas o gelo novo formava-se rapidamente e obrigava a tripulação a apressar a partida.

O Vega prosseguiu pelo canal junto à costa, mas as placas de gelo embatiam violentamente contra o casco, e custava muito avançar alguns metros. De tal modo piorou que a 27 de Setembro, pouco depois do Cabo Onmyn e ao largo da Baía de Kolyuchin, foram obrigados a parar: o pequeno Vega estava finalmente prisioneiros de uma enorme placa de gelo. Ancoraram a uma milha da costa, em frente à aldeia de Pitlekay - um lugarejo de oito tendas dos nómadas Chukchi.

Lugar de invernagem do Vega, uma milha ao largo de Pitlekay.


---------------------------------
[continua em breve]