quinta-feira, 4 de abril de 2019

Å i Lofoten, a última aldeia antes do temível Maëlstrom.


Viagem de sofá: mesmo no extremo das Lofoten, ilhas que são talvez as mais belas do planeta, estamos num dos pontos mais difíceis de alcançar no continente europeu. É no fim da estrada E10, como se fosse um finis terra do Norte, que fica a aldeia de Å, uma jóia encarnada numa paisagem de mar azul e montanhas rochosas, de inverno nevadas. Claro que nunca lá fui, nem irei; vai daí, este é o relato de uma bela não-viagem.


Å, que nome mais bem calhado; narrativo, curto e sintético. Não restam dúvidas: se não é o fim, então é o princípio de uma jornada. Å pronuncia-se [oː], como em francês 'eau', e significa ribeiro em Norueguês.


Cenário de fiorde, com as rorbuer (cabanas de pescadores) vermelhas sobre fundo montanhoso, que parece irreal coberto de branco.

Onde termina a E10: no extremo das Lofoten e sobre o Moskenstraumen (Maëlstrom)


Å i Lofoten é uma das mais bem preservadas aldeias piscatórias na Noruega, com 33 registos na lista de património histórico. No século XX e até ao fim da década de 1980 foi um porto muito activo na pesca do bacalhau, certamente já todos tivemos no prato o produto do armazém de seca.


Å foi um centro de pesca de bacalhau. Alguma actividade se mantém, mas em escala reduzida.



Era aqui que se salgava o peixe. Ainda se vê bacalhau a secar.


Torrfisk, o museu da secagem do peixe:

Nas antigas instalações de seca e fabrico de derivados (conservas, óleos) foi instalado um museu.
Traineira de um homem só.

O odiado óleo de fígado de bacalhau.

A maioria das casas vermelhas (rorbu) oferecem agora alojamento; aqui, a actividade de pesca cessou e deu lugar ao turismo.


Com sol ou com neve, sempre um cenário deslumbrante.




E que dizer das noites ?


Para lá das montanhas, em direcção ao mar, encontra-se o  Lago Ågvatnet, rodeado de picos impressionantes. É um lago glaciar que por pouco era um fiorde: só um estreito istmo de areia o separa do mar.


E é por trás de toda esta tranquilidade que as águas do Atlântico Norte formam o famoso

Maëlstrom (Moskenstraumen)


Estamos em face do mal afamado "Maëlstrom“, uma das mais fortes (*) correntes de maré no planeta, onde se criam violentos torvelinhos e refluxos, em resultado da barreira que as Lofoten opõem ao fluxo de cerca de 400 milhões de metros cúbicos de água do mar.

As águas revoltas, sibilantes, vertiginosas do Moskenstraumen.


O braço de mar tem entre 4 e 5 km de largo, e menos profundiddae do que o mar em volta. A maré enche duas vezes por dia com amplitudes até 4 metros. No intervalo entre marés, a corrente inverte o sentido e é então que surgem os redemoinhos.

"arfando, fervendo..." (Allan Poe)

Descrito pela primeira vez pelo Grego Pytheas há mais de 2000 anos, foi representado com aterrador exagero em várias cartas marinhas, onde era ilustrado com imagens de monstros. Essas descrições fantasiosas perduraram na Europa até ao séc. XVIII.

O Maëlstrom na Carta Marina de Olaus Magnus: horrenda Charybdis

Tornou-se mais conhecido depois de Edgar Allan Poe escrever em 1841 um conto chamado ´Uma descida ao Maelstrom´ e Jules Verne o mencionar nas ´20 000 léguas submarinas´. Dois excertos de Allan Poe:

"Olhei aturdido, e abrangi uma larga extensão de oceano, cujas águas exibiam uma tonalidade de tinta tão carregada que me lembrou de imediato a descrição do Mare Tenebrarum de um geógrafo Núbio. A imaginação humana não pode conceber um panorama mais deploravelmente desolado. À direita e à esquerda, tão longe quanto a vista podia alcançar, estendiam-se, como muralhas do mundo, linhas de falésia horrivelmente negra e saliente, cujo aspecto deprimente era ainda mais vigorosamente ilustrado pela ressaca, que se lançava às alturas contra a sua branca e medonha crista, uivando e rugindo sem parar.
(...) 

Mesmo enquanto eu olhava, a corrente adquiriu uma velocidade assustadora. A cada momento a impetuosidade das águas aumentava. Em cinco minutos todo o mar era fustigado por fúria ingovernável. Ali, o vasto leito das águas, retalhado e cerzido em mil conflituosos canais, explodia de súbito numa convulsão frenética – arfando, fervendo, sibilando – voluteando em gigantescos e inúmeros vórtices, e tudo rodopiando e submergindo na direção leste com uma rapidez que as águas nunca assumem noutros lugares."(...)
                                                                                                 [tradução minha]

Ah, as fantasias e os medos do ultra-romantismo. Hoje levam-se ali turistas a passear nos insufláveis, pela adrenalina.

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(*) O mais forte turbilhão de marés é o Saltstraumen, 30 km a Norte, perto de Bodø.

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