sábado, 13 de abril de 2019

Descer os rios, um impulso vital segundo Matt Gaw


Gosto de narrativas de viagem, muitas estão entre os meus livros favoritos - A Ilha do Tesouro, A Woman in the Polar Night, os muitos de Jules Verne, o alucinante relato de Shackleton, os contos asiáticos de Maugham,  a Odisseia, Kim ou Captains Courageous de Kipling ...


Estas de Matt Gaw são viagens de pequena escala, small is beautiful, pelos modestos rios britânicos. Numa canoa que eles próprios montaram a partir de um kit canadiano, a 'Pipe', dois amigos abandonam a estrada e a cidade para se dedicarem a percorrer a Inglaterra rural remando pelos muitos rios e canais, acampando nas margens onde o gado pasta, frequentando os pubs com acesso fluvial, acordando com os pássaros. As aventuras são ditadas pelo tempo variável típico da ilha, pelos açudes de transposição mais ou menos arriscada, pelos diques e comportas, pelos lamaçais de maré vaza, pelos troços que têm de ser feitos a pé pela margem, com a canoa às costas. E a tragédia também acontece.

Mesmo sem se tratar de grande literatura, a escrita de 'The Pull of the River' é sugestiva e bem urdida, algumas descrições são rica e detalhadamente pictóricas, e é um prazer como leitura de cabeceira. Embala, às vezes emociona. E, no conforto de casa, viaja-se.


A começar pelo rio Waveney:

" Navegamos por açudes e pontes, suando um pouco sob o calor mas refrescados pelo chapinar dos remos. A luz começa a dourar-se ao entardecer, e decidimos parar para dormir antes de Wortwell, erguendo a Pipe através de lama movediça até alcançar um campo. Fazemos chá e tomamos golos reconfortantes de rum pelas canecas, enquanto observamos uma coruja caçar silenciosamente ao longo da margem. "
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" Vemos o nosso primeiro guarda-rios perto do antigo moínho de Hoxne, disparando sobre nós como um fogacho de gás - mergulhando e volteando para nos mostrar o peito laranja antes de desaparecer sobre um prado. Mais dois logo a seguir, zumbindo ao passar em turbo enquanto piam um ao outro no que parece soar como zanga.  Talvez estejamos a prejudicar-lhes a pescaria. "


" O rio cresce, sempre mais fundo e mais largo, tornando-se um verdadeiro curso de água da Broadland, e fazendo um anel à volta da cidade*, como um laço de água. Sem vento, a água parece uma folha de vidro escuro vulcânico, reflectindo árvores, pássaros e sebes. O rio expande-se até preencher todos os sentidos, não é fácil distinguir o real do reflectido. O horizonte é alucinante, fluído, acobreado. O feitiço só é quebrado pela chegada da chuva. Um estouro rimbombante abana os ossos, seguido por gotas de água grandes como berlindes que fazem o rio bailar e ferver. "
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" Dilúvios anteriores arrastaram paus e limos ao encontro de ramos deitados, criando barragens de castor lodosas que temos constantemente de transpor, praguejando e levantando o pesado casco da canoa atrás de nós. Passamos do fluvial ao arbóreo num piscar de olhos
."


Depois no Stour, encalhados num baixio de areia lodosa, à espera da maré alta:

" Apanhamos conchas para evitar pensar no frio que nos gela os ossos, e dispomo-las sobre o nariz da Pipe enquanto a água começa a subir à nossa volta, as poças a invadir-se umas às outras.  Uma gaivota, incomodada com a nossa presença, lança-se relutantemente ao vento. A lingua de areia das conchas está agora menos sólida, uma faixa  difusa ondulante entre a terra e a água. Em minutos, conseguimos de facto ver a maré. Enquanto o rio corre para o mar, a corrente empina-se contra ele e sobre ele, criando uma tensão na superfície da água, ocasionalmente desencadeando um furioso redemoínho, ou levantando-se em picos como negras barbatanas dorsais de centenas de peixes lutando para subir a corrente. É para nós sinal de retomar viagem."
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" O céu é de azul frio, a desbotar para pálido nas bordas; limpo, à parte um rasto de vapor alongado e desalinhado pelo vento, até ser uma coluna dorsal enrugada, de vértebras difusas. Também há nuvens variadas. Pilrito. Só visíveis quando o sol ilumina o peito branco e a parte inferior das asas trémulas, eles pulsam e voam rápido sobre as águas. As penas brilham como as escamas faiscantes de um peixe prateado em cada mergulho e rodopio. Paramos de remar para ver, mas o burburinho termina tão depressa como começou, pousam todos como bonitos seixos numa curva de lodo junto à margem direita, enfiando os bicos na lama."
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" Parte do que acho espantoso em ter experiência da Natureza são este momentos de caos bravio, o clamor puro da vida quando a Natureza e nós estamos embrulhados juntos numa só canção. A ausência de fronteiras do mundo natural não só nos envolve ou impressiona; assimila-nos, reclama-nos. É muitas vezes uma experiencia fugaz, mas inegavelmente preciosa. Alimenta a alma. E mais, consigo senti-la aqui neste estuário. Durante uns segundos de assombro, na vibração do bater de asas, a água rastejante e o poderio da maré impetuosa, eu fui gloriosamente, precariamente, parte de tudo isso."

                                                                                                          [traduzido do inglês]

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(Re)descobrir o prazer de viajar por esse interposto criador de ilusões - o Livro!

* a cidade é Bungay, na margem do Waveney.

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