quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

Os (meus) melhores do ano 2019 - música (CD) e livros


Bem sei que só um old retro como eu ainda ouve música por CD e lê edições em papel. Serão provavelmente, até ao fim, as duas mais fortes marcas de pertença à geração de 50 - 60; livros e CDs, hurra!

Marca dos tempos é a pobreza criativa e de talento artístico neste ano que terminou. Nada de transcendente, nada de essencial, e se calhar nada de muito bom sequer. Cada vez mais, e com mais frequência, é imperativo voltar aos ´clássicos´ - mesmo que sejam de finais do século XX.

O que li de melhor em 2019:

Matt Gaw, The Pulll of the River, ed. Elliott and Thompson
Um relato entre o alucinante e o divertido de várias jornadas de canoa nos rios britânicos  - além do Tamisa, o Cam, o Wye, o Severn, o Stour... "uma viagem de entrada no coração bravio e aquático da  Grã-Bretanha". Inesperado e muito bem escrito. Deixei há tempos um excerto aqui, cá vai mais outro:

"Há tantos verdes. Centenas. Sinto que devia haver outras palavras: para o verde tintado de amarelo das ervas antigas junto à margem; para o verde mais claro da erva nova e do prado; o verde garrafa dos corações dentados das folhas de urtiga e outras plantas sem flor; os mais sombrios espinheiros, musgos e fetos, as heras que revestem os troncos de carvalho e pinheiro. Menta, esmeralda, sofá de clube londrino, galochas velhas, costas de sapo. Peixes que passam sob a canoa, nitidamente visíveis nos baixios, enquanto em poços mais fundos os seus primos mais gordos deslizam subindo a corrente, os dorsos brancos de luar."



Emily Dickinson, Envelope Poems, New Directions
Poemas ou rascunhos ou notas apenas? Aproveitando as dobras, vincos, marcas e formas do envelope, Dickinson escreveu 'coisas' onde se projecta a sua personalidade poética. Hei-de lhe dedicar um post em breve.

               We talked with each other about each other
               Though neither of us spoke —



Jean-Paul Kauffmann, Venise à double tour, ed. Équateurs
Por vezes aborrecido e vaidoso mas quase sempre informativo e revelador, o jornalista Kauffmann (excelente L'Arc des Kerguelen) teve uma ideia condutora: visitar as igrejas fechadas (normalmente fechadas) de Veneza, onde nenhum turista entra sem guia e algumas nem assim. Serão umas 40... - o livro traz dois mapas de localização. A ideia de Kauffmann foi como um guião para percorrer de novo ruas e canais menos frequentados, com peripécias grotescas na maneira como o patriarcado de Veneza trata o assunto. Algumas dessas 'fechadas':
      Penitenti, Zitelle, Ospedaletto, San Giovanni, Sant'Agnese, 
      San Girolamo, Santa Giustina, Capuccine, Eremite, Catecumeni, 
      San Gallo, Maddalena,San Gioacchino, Soccorso...
Também hei-de voltar a este livro aqui no Blog.


Olivier Rolin, Siberia, Tinta da China
Depois de O Meteorologista, Rolin volta a mostrar-se conhecedor profundo dessa terra sem fim deixada à margem da História, praticamente à margem da humanidade - salvo locais pontuais como Irkutsk (onde há uma rua Marat !) ou Khabarovsk. Majestoso e terrível:

"Uma aldeia na Sibéria, à beira de um estuário gelado durante dez dos doze meses do ano. Frio imperioso, cintilante, fumegante na sua enorme extensão. Noite polar durante quatro meses. Nuvens de mosquitos em Julho. Três mil habitantes, geólogos prospectando imensidões virgens do Artico, gente que vive do aeroporto, o único naquelas latitudes capaz de acolher todo o tipo de aviões, caçadores-pescadores mais ou menos sedentarizados. Três lojas, dois restaurantes sinistros, escuros, atapetados de peluche púrpura, uma igreja em construção, um museu minúsculo comportando uma única sala cheia de um bricabraque de aves empalhadas, ossos de mamute, desenhos infantis, trajes dolganos - o pequeno povo nómada, aparentado com os iacutos, desta parte da Sibéria. (...) Contentores, destroços de camiões, de lagartas, de radares, de tudo, dispersos. (...) Khatanga é uma ilha, entre a tundra e a banquisa."


b
Tracy Chevalier, A Single Thread, The Borough Press
Desta autora já apreciei outros romances históricos como Girl with a Pearl Earring, Burning Bright, The Lady and the Unicorn; este A Single Thread, não sendo o seu melhor, é uma leitura pitoresca e leve que nos transporta à Inglaterra entre as duas guerras, ainda em grande parte Victoriana, desfiando o atribulado novelo da vida de Violet Speedwell desde que começa como bordadeira na Catedral de Winchester até ao seu retiro com uma filha na ilha de Wight. Uma cena que fica é a da subida ao campanário para assistir ao desempenho dos famosos sineiros (bell ringers) de Winchester.

Menos bom foi Warlight / Ombres sur la Tamise de Michael Ondaatje (Éd. de l'Olivier).
Muito conseguida a primeira parte, com o rapaz protagonista metido em aventuras perigosas pelas ruas e cais esconsos na noite de Londres, no pós-guerra de 1945. Depois uma segunda parte de biografia em flash-back, sem trama mas com psicologia familiar em excesso, é uma estopada.

As melhores novas gravações que ouvi em 2019:

Mendelssohn, integral das Sinfonias
Orquestra NDR da Radio de Hamburgo, dirigida por Andrew Manze

Mahler, Sinfonia nº 6 'Trágica'
MusicAeterna, dir. Teodor Currentzis
A Sexta é talvez, junto com a 2ª, o mais alto a que Mahler subiu na composição. Esta gravação heterodoxa, dirigida com cristalina precisão e impressionante transparência, faz-lhe justiça. Imperdível, ponto alto de 2019.
Brahms, Serenata nº 2 op.16
ORR, dir. John Eliot Gardiner
Não é pela 5ª de Schubert que este disco vale; é pela fenomenal Serenata de Brahms, ao vivo no Concertgebow. É uma festa ! Brahms alegre e satisfeito consigo, por uma vez, em cinco movimentos, quase uma sinfonia, onde os sopros reinam. Um adagio divinal (Clara Schumann dixit) e um Rondo esfuziante.

Finalmente, descendo na hierarquia dos valores artísticos, uma menção para música não erudita; dentro da música popular urbana, agradou-me muito o novo Coldplay, Everyday Life , fora de moda como convém, poético e humanista até mais não, convenientemente esquecido pela 'crítica'.

Termino com a 3ª, Escocesa, de Mendelssohn por Andrew Manze:

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