domingo, 19 de janeiro de 2020

Roteiro de Veneza 'chiusa' - as igrejas fechadas e o jardim interdito.



A procura não é original, mas as igrejas fechadas de Veneza são o móbil obsessivo do mais recente livro de Jean-Paul Kauffmann. Intrigado pelo número (mais de quarenta) e pela misteriosa razão do seu fecho - algumas abrem durante a Bienal de Arte, outras só de madrugada, outras só para grupos com Guia autorizado, outras nunca - e desafiado pelo silêncio opaco do Patriarcado quando instado a dar explicações e conceder autorizações, Kauffmann não desistiu enquanto pôde e assim acabou por conseguir visitar algumas. Vale a pena ? Procurei na net imagens para ilustrar a busca e complementar a leitura. Afinal, acabei por descobrir outras belas coisas 'escondidas' em Veneza, valeu a pena por isso.

Eu gostei muito de ler L'Arche des Kerguelen, um relato de turismo de aventura nas míticas ilhas francesas do Pacífico, lugares de um aliciante desconhecimento geral. Desta vez Kauffmann foi aventurar-se em Veneza, focado num roteiro alternativo, também este de lugares desconhecidos. A Veneza que também eu nunca vi.

Zattere e os Gesuati vistos da Giudecca, do outro lado do canal

Num texto demasiado palavroso e erudito - enfeitado de memórias, referências e citações - sobre as peripécias  para conseguir autorização de visita, as primeiras oportunidades surgem por acaso. Da janela da casa onde está alojado, na Giudecca frente aos Gesuati, um dia vê ao longe a Igreja de Sta Maria delle Visitazione e nota algo de diferente: a porta aberta ! Corre ao vaporetto para atravessar o largo canal mas quando chega a porta aberta é só o portão da rua - no átrio de entrada as portas de acesso ao interior continuam fechadas.
A pequena Sta Maria della Visitazione

Mais falhanços se seguirão: Sant'Anna, na zona do Arsenal, onde consegue entrar de golpe pela folga no cadeado que se abriu devido à degradação da madeira da porta: lá dentro não há literalmente nada, só paredes nuas e andaimes de segurança, uma visão deprimente.

Sant'Anna di Castello, igreja de presídio.


Outra aventura foi a visita a Santa Maria del Pianto. Igreja fechada cercado por um jardim murado, caso único em Veneza.


No muro, Kauffmann acaba por encontrar uma fenda para espreitar: lixo no jardim. Ouve vozes numa língua do Leste - há ali ilegais acampados. O abandono é total, dentro da Igreja não deve sobrar nada, só madeira carcomida e paredes cobertas de fungos. Mais uma procura inútil.

Depois de alguma hesitação em desisitir, deu conta de trabalhos que decorriam à porta de San Lorenzo em Castello; e foi ver. San Lorenzo fica belamente enquadrada por canal, ponte e fachadas venezianas, mas é uma igreja pesada e feia, parece  arquitectura prisional, austera e com janelas semicirculares gradeadas. Consta que Marco Polo lá pode estar sepultado.

San Lorenzo, feiíssima mas num enquadramento de sonho, em Castello.

A porta está entreaberta, e aproveitando de golpe a 'boleia' de algum pessoal que entra, Kauffmann esgueira-se discretamente para o interior. Fica por momentos paralisado pelo inesperado: no chão, um buraco enorme, que parece um poço; em frente, um altar barroco com uma arcada impressionante, encimado de esculturas.

Interior: a arcada e o poço.


A sensação é de perda, de um espaço vibrante a que foi retirada a alma. A luz e sobretudo o eco dos ruídos metálicos na acústica do enorme espaço vazio são as impressões mais intensas, até ao momento em que é detectado como estranho e convidado a sair.

Muitas outras visitas serão conseguidas mas decepcionantes, pela ruína e esvaziamento do interior: Le Terese, Penitenti, Santa Croce, Soccorso, San Nicolò dei Mendicoli...

A estratégia de contactos alternativos obteve nalguns casos mais sucesso que a autorização do Patriarca; Kauffmann consegue a abertura de San Lazzaro dei Mendicanti, em Cannaregio igreja integrada num Convento que agora faz parte do Hospital Civil da cidade.

A fachada da Igreja - Convento dá directamente para o canal.

O complexo conventual é enorme, e no interior há de facto várias igrejas ! Depois de percorrer corredores e pátios, dá-se com a "fachada interior" de San Lazzaro.

Vestíbulo e segunda fachada.

A Igreja só abre para cerimónias fúnebres no Hospital. Entrando, finalmente, Kauffmann ficou na penumbra perante Tintoretto e as lendárias 11 000 virgens. Um choque.

Sant'Orsola e le undicimila vergine

É verdade que poucas pessoas visitam esta igreja; mas em rigor ela não está fechada - está semi-fechada... o portão da fachada exterior aberto, mas o da interior só para funerais.

O santuário monumental a Lazzaro Mocenigo

Parece um cofre de jóias. Não é bem o lugar secreto, abandonado, misterioso, que Kauffmann procura. Ele aprecia em particular a zona onde Hugo Pratt situou a visita de Corto Maltese a Veneza: entre o Arsenal, uma área deprimida e ignorada pelos turistas, e Cannaregio. Por exemplo, a ver o poço da Misericórdia, no Campo de l'Abazia:

A Igreja da Abadia da Misericórdia, em pedra de Ístria (1659), restaurada por fora, é agora local de exposições.

Il Pozzo, também em pedra de Ístria.

A Scuola Vecchia della Misericordia, em mau estado, é um belo edifício gótico de 1308 anexo à Abadia.

Um dos recantos mais belos, em Cannaregio. 

Foi aqui que Tintoretto pintou 'Il Paradiso', o enorme mural da Sala do Conselho no Palácio Ducal.

Campo de l'Abazia, o poço de Maltese e a Scuola Antiqua, com a fachada gótica segura por agrafos.

Em 1583 foi construída do outro lado do canal a Scuola Nuova, de exterior austero. Um dos contactos alternativos de Kauffmann, uma jovem restauradora, convidou-o para um encontro nessa que é uma das seis 'Scuola Grande' de Veneza.

A sala térrea já é espectacular, dividida em três naves por uma dupla série de 12 colunas, e frescos de Veronese:

Um espaço utilizado para exposições e eventos.

Mas quando Kauffman sobre à Sala dei Confratelli, é um deslumbramento:

Frescos de Veronese nas paredes. É a segunda maior sala de Veneza, depois do Palácio Ducal.



Uma bela descoberta! Não é uma igreja, mas é um tesouro interdito aos turistas.

Como esta há outras coisas interessantes por onde o livro passa. Por exemplo, o Palazzo Labia é propriedade... da RAI ! Mesmo tendo um Tiepolo no interior, está vedado ao público e serve para recepções e eventos mediáticos. Enfim.

"O Encontro de António e Cleópatra", obra prima de Tiepolo fechada ao público pela 'pública' RAI. Só arranjando um conhecimento ...

Detalhe. Genial. O desenho, as atitudes, a composição, António !

A sumptuosa escadaria do Palácio Labia

O Jardim do Éden , na Giudecca, é outro lugar lendário em Veneza, até pelo nome; nunca 'ninguém' o viu a não ser de fora, claro. Só se entra por convite.

O Palazzo é propriedade da família Hundertwasser, um pintor naïf austro-neo-zelandês.

Recriado em 1884 pelo inglês Frederick Eden, ficou famoso por ter sido frequentado pela fina flor da cultura fin-de-siècle.


Entre os que visitaram e escreveram sobre o jardim contam-se Proust, Rilke, Bernard Shaw, D’Annunzio, Hemingway, Tagore, Cocteau, Henry James.


Magnólias, cedros, ciprestes, loureiros e carvalhos. E roseiras, muitas.



Vista do jardim para o exterior.

Veneza já foi dada como estragada e perdida vezes sem conta, pelo menos desde o séc. XIX. Tal como o Planeta e a 'catástrofe' climática, o anúncio da sua decadência é prematuro. Cada vez mais bela, com mais motivos para ser visitada, e com cada vez maiores esforços para protegê-la.

Canale della Giudecca: Veneza única e eterna.

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Não será um grande livro, mas proporcionou-me um raro prazer de descoberta:

Jean Pierre Kauffmann, Venise à double tour
Ed. Équateurs, Fev. 2019
http://veniseadoubletour.tumblr.com/

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