domingo, 31 de janeiro de 2021

Escolhas de Tracy Chevalier em confinamento - '#lockdown art'.


A escritora Tracy Chevalier (Girl with a Pearl Earring, The Lady and the Unicorn, Burning Bright, A Single Thread) tem publicado no Twitter uma série de posts com as obras de arte que a ajudam a aguentar este período de restrições, que titulou #Lockdown Art. É como se visitássemos demoradament um museu, ao ritmo de uma obra por semana, ou de 15 em 15 dias... e todas escolhidas a dedo. Tracy não será perita em Arte, mas como estudiosa que muitas vezes cita objectos artísticos nas suas novelas, merece-me atenção.

Já nem vou colar aqui 'Rapariga do Brinco de Pérola'; Chevalier vai no entanto buscar outro Vermeer para a sua lista de preferidas:

Menina lendo uma carta à janela, Vermeer

Sim, em confinamento devíamos escrever e receber cartas... regressar à preferência pelo Serviço Postal ! Mas ainda a propósito deste quadro, a escritora publica também a 'versão' fotográfica moderma de Tom Hunter, notável:

Woman Reading a Possession Order, Tom Hunter, 1998

Influências de Vermeer também nesta obra do dinamarquês Vilhelm Hammershøi, o ´poeta do silêncio' :

Interior com Ida numa cadeira branca, 1900

Um dos melhores livros de Tracy foi escrito à volta da manufactura da tapeçaria flamenga "La Dame a la Licorne": 

À mon seul désir, Flandres, ca. 1500. (Jean d'Ypres ?)

Também favorito, este Murillo ilustra uma forma triste de estar à janela, Mujeres en la ventana:


Outra Femme a la fenêtre, desta vez de Degas, igualmente sublime; tal como Tracy, muitas pessoas se terão sentido assim.


Genial, esta obra de Kandinsky, um homem só frente à cidade:

Pintura com casas (Bild mit Hausern), Kandinsky

E a terminar hoje, com algum humor, esta gravura de 1793 de William Blake que Tracy escolhe também como favorita, I want ! I want !

Fugir para a Lua ! :) Sim !

A lista prolonga-se, um ou outro não me agrada por aí além; mas talvez a ela volte se surgirem mais maravilhas.

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Sei de uma pessoa em Portugal que faz Arte do confinamento. Publica no blog Silvertree, vão lá ver, tem fotografias lindíssimas, algumas com texto - e a autora escreve tão bem como fotografa. Não diverte, mas expõe-se e comove.


sábado, 30 de janeiro de 2021

Em Rochester: High Street, Dickens, Cathedral, fish & chips !


Rochester, Kent, foi outra pequena cidade histórica de Castelo e Catedral que visitei por uma tarde ensolarada, há sete anos; a viagem desde Tunbridge Wells foi demorada, a entrada em Rochester lenta até finalmente estar apeado em High Street. Uma festa ! Com sol, a rua embandeirada, o comércio inglês colorido, as casas Tudor com travejamento de madeira, tabuletas e floreiras abundantes, tudo ajudava a um ambiente urbano alegre e acolhedor. Tanto quanto sabia, a cidade resumia-se a Castelo (ruínas), Catedral e rua principal - a High Street.

A 'High Street' de Rochester é um gosto.


Passear nestas ruas inglesas de pequena cidade é um dos prazeres raros que tive em viagem, sentir vida urbana numa escala agradável, num espaço bem tratado, acarinhado, é como um berço de civilidade.

Lojas de gulodices.


Várias livrarias, claro, esta é de livros usados.

Já mais para o fim da rua, demos com a casa onde Charles Dickens viveu e escreveu - por exemplo os 'Pickwick Papers' -, o chalet suíço na Eastgate House.


O chalet está rodeado de um pequeno jardim com tanque e canteiros de alfazema.



O chalet foi oferecido a Charles Dickens em 1864 por um amigo; chegou por combóio, 94 peças empacotadas em caixas; acabou construído num parque perto do Tamisa, e Dickens usá-lo-ia como retiro de escritor; afinal foi também aqui que morreu em 1870. 


Ao que sei, graças a uma subscrição pública já está totalmente recuperado e é agora casa-museu.

A High Street nem é longa, mas depois do passeio eram horas de nos restabelecermos. Para ser rápido e sem surpresa, e barato, nada melhor que fish and chips, e uma vez não são vezes. Foi no The City Wall, um bar que tinha uma esplanada ao sol, mesas e bancos de traves de madeira, tosco. Gostei do cartaz à entrada:

Yesss!

Uma especialidade :D, e foi fast enough.

E depois, para terminar a visita,

A Catedral de Rochester


O edifício parece atarracado, contudo é uma das mais antigas, valiosas e apreciadas catedrais normandas do país: data de 1080, quando a arquitectura normanda estava no auge; do edfício original conservam-se a nave, a cripta e a fachada românica. 


O janelão de vitrais foi inserido na fachada já no século XV, mas os vitrais tiveram de ser restaurados posteriormente.



Como seria de esperar, a nave é larga mas não muito alta e o tecto é em trave de madeira, a sobriedade do românico normando.

Acrescentos góticos também valorizam a Catedral, como a porta da Biblioteca do Capítulo, do século XIV.



A Catedral foi centro de peregrinação durante o século XIII no Reino de Kent (o primeiro reino inglês nas Ilhas), que desde Æthelberht se tinha convertido ao cristianismo. Os peregrinos seguiam o Augustine Camino, que partia de Rochester, passando por mosteiros igrejas e santuários.  

Pintura mural medieval na parede do côro: a deusa Fortuna faz girar a Roda que leva os homens para o infortúnio.

O côro e o magnífico órgão.


Com muito restauros e modificações, o órgão data de 1791. Foi votado o mais bonito órgão de catedral do mundo.

Soube mais tarde que também a biblioteca guarda alguns tesouros, por exemplo uma cópia manuscrita do século XII (1103 ?) da obra de Stº Agostinho 'De Consensu Evangelistarum Libri Quatuor'(Sobre A Harmonia dos Evangelhos).

Era certamente uma das obras mais lidas no mosteiro, como provam as muitas anotações.

Uma letra ‘I’ colorida a azul e verde e decorada com um dragão na base.

Mais valioso ainda é o Textus Roffensis, outro manuscrito do século XII (~1120), uma colectânea de textos dos primeiros reinos medievais, começando no mítico Æthelberht de Kent (~ 560-617), em línguas e escritas raras como o Cantuário. É notável o Código de Leis de Æthelberht, o primeiro texto de que há registo de e para Ingleses, afinal bem anterior à Magna Carta !
A primeira página

Vale a pena ler mais, aqui.

E pronto, para cidade pequena não está mal, Rochester.

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quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Música que vou ouvindo confinado entre Wharfedales


Ouvir as minhas novas Wharfedale é um consolo antiviral. De 2020 - ano Beethoven - sobraram várias excelentes gravações; ainda não ouvi todas e algumas merecem repetições, a disfrutar de melhor reprodução. São a prova de que nem tudo foi mau no ano vintevinte. Relato agora duas novas curiosidades, e uma coisa polémica.

Beethoven rarities, Howard Griffiths


Neste CD, a primeira raridade é a versão para piano do próprio Beethoven do seu concerto op. 61 para violino. Soa estranho, talvez artificial, um misto de já ouvido mas nunca antes ouvido; parece-me o piano um pouco tímido, cedendo à orquestra o protagonismo, mas pode ser um desequilíbrio intencional. Ouve-se bem, de qualquer forma. Já a alegre música para o Ritterballet (ballet do Cavaleiro), escrita para as festas de Carnaval em Bona, é uma suite de temas populares de que Beethoven na época nem sequer reivindicou a autoria. Ouve-se uma vez.

Assustadora é a Wellington Sieg. Uma espécie de marcha guerreira com muito tambor e trompa, incorpora o célebre Rule Britannia e o Mirandum (= Malborough) que vai à guerra, celebração anti-napoleónica, com duas orquestras (os ingleses e os franceses) em despique. Montes de barulho orquestral, que termina com Malborough declinando até se finar. Na segunda parte, o God Save the Queen inglês é objecto de uma curiosa interpretação com variações, lembrando por vezes o final da 9ª. Enfim, um outro Beethoven mais ruidoso e mundano.

Contemporâneos de Beethoven, Reinhard Goebel

Ainda relacionado com Herr Ludwig, este disco intitulado Beethoven´s world junta obras de Salieri, Hummel e o desconhecido Vorisek. Do primeiro, a suite 26 Variações sobre "La Folia di Spagna", é alegre mas cansativa; de Hummel, um injustamente secundarizado compositor, o majestoso e complexo Duplo Concerto para Violino, Piano e orquestra, com Reinhard Goebel a dirigir a sinfónica da WDR (Colónia). Há ressonâncias de Mozart, mas um Mozart que tivesse já aprendido com Beethoven... mas não, é Hummel no seu melhor, a escrever para dois instrumentos solistas e orquestra, o que não é coisa fácil, e a sair-se com mestria. 

Pletnev e a orquestra russa

Surprendente, esta gravação ao estilo russo, como se Beethoven fosse Tchaikovsky. Nalgumas sinfonias resulta, noutras não. Pletnev afasta-se das interpretações historicistas, retoma a manipulação (ultra)romântica, mas com um gusto, uma energia impressionante, digamos ao estilo de um Solti nos seus dias mais tresloucados. Portanto, nada a ver com o que estamos habituados a ouvir.

Fosse a orquestra medíocre e o resultado era um desastre; mas nunca ouvi uma a orquestra russa tocar com tal rigor, com tal vigor, enfatisando as dinâmicas a um máximo muitas vezes discutível. A gravação é excelente, toda esta ênfase passa sem distorção. Gosto muito das 2ª, 4ª e 7ª.  A interrogação na 5ª deve-se ao último andamento, realmente inaudível de tão erradas serem as opções de ritmo e dinâmicas, os fraseados aniquilados numa cacofonia estrepitosa. Pelo que li, a 3ª, 6ª, 8ª e 9ª são de fugir a sete pés, completamente arrasadas pela maluqueira de Pletnev. 

Seja como for, uma lufada de ar. Se é fresco ou insalubre, depende dos gostos.

Que música vou deixar na despedida ? Não, não é Pletnev, é antes a WDR num excerto de Hummel, o andamento final do Duplo Concerto:

Johann Nepomuk Hummel (1778 – 1837) nasceu em Bratislava. Teve lições de piano com Mozart, que o apresentou aos 9 anos num dos seus concertos. Em Londres teve lições com Clementi e contactos com Haydn. No regresso a Viena foi alunode Salieri. Por essa altura o seu contemporâneo Beethoven começou a partilhar com ele a intensa vida musical de Viena, e claro que Hummel perdia no confronto, aliás amigável. Mozart e Schubert viriam também fazer sombra a Hummel, que mesmo assim chegou a kappellmeister para  a corte do príncipe Esterházy.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Notícias da Islândia: o que diz uma página de jornal em branco


Crónica de um confinamento odiado.



Agradeço a Nancy Campbell a divulgação desta página publicada no Morgunblaðið de Reiquejavique, em Junho de 2002, por Roni Horn* : 



Traduzo:

Pode o leitor dizer desta página, por exemplo, que ela não tem nada. Mas ao ler este texto está provavelmente a examinar o papel em que a notícia está impressa. A dar-se conta da matéria física do jornal: a sua qualidade macia e fibrosa, a sua densidade que não chega a ser opaca, a cor branco-sujo, a textura mesclada. Observa talvez a superfície desigual da folha, levemente encorrilhada pela humidade. Vê sombras da página quinze que aparecem aqui e ali. E se olhar com cuidado, traços e sinais da página de desporto na página anterior são visíveis também. Consegue ver que o papel modula a luz que incide sobre ele, sentir que isso silencia o ruído de actividade periférica e foca a sua atenção. Escuta o seu carácter sonoro quando amarrota o papel tentando segurá-lo melhor, talvez procurando vê-lo mais de perto. Mas mesmo em close-up o vazio desta página, equilibrado como está no final, é pleno de natureza.

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* Roni Horn é uma escritora, artista gráfica e escultora, que mantém no jornal islandês a página 'Iceland's Difference'.


domingo, 17 de janeiro de 2021

Louisiana, um museu que vale pelo sítio


Visitei o Museu de Louisiana, a norte de Copenhaga, no Verão de 1996. Segue-se pela estrada costeira sem nada de especial por quase quarenta quilómetros, estranhando 'como foi nascer ali um museu ?'. Uma casa nobre rural agora pública, sobre a um relvado de cota baixa à beira-mar, prestava-se ao ajardinamento de um parque e o melhor que há para situar num parque é um Museu. Digam-no Serralves ou a Gulbenkian ou os National Museums de Edimburgo.


Nessa estrada para Humlebaek surge então uma casa de dois andares coberta de hera, onde fica a entrada e a loja. A seguir deparei-me com com uma arquitectura moderna de muito bom gosto, de projecção horizontal, bem integrada; é o novo Museu, um pavilhão raso de pedra e madeira, com corredores vidrados interligando os blocos, de onde se pode ver o jardim. Luz a rodos lá dentro.

O Museu de Louisiana é de arte moderna. Arte moderna na Dinamarca, ora aí está uma coisa que não promete nada de bom, e de facto nem com boa vontade lá vi obra que me chamasse sequer a atenção, só borradelas e grafittis de terceira ordem no meu gosto, de modo que atravessamos a casa em diecção ao parque sobre o mar; demos então com uma salinha lindíssima com Giacomettis !

É preciso ter uma visão de génio.

 
Femmes de Venise

Saímos depois para o jardim, abundantemente decorado com esculturas.

Da cafetaria tem-se uma vista muito ampla para o mar e a costa da Suécia.

Figura com duas peças reclinadas nº 5, de Henry Moore


'Human concretion on an oval bowl', do surrealista Jean Arp




Acabou por se fazer tarde, saímos quando o sol já descia baixo perto do mar.




Já agora, por anedota, soube que Louisiana hus vem da dedicatória do antigo proprietário da mansão do séc. XIX às suas três esposas, todas chamadas Louise !