domingo, 31 de outubro de 2021

O Nykur de Sørvágsvatn ( lenda faroense no lago maior de Vágar )

 

O Nykur de Sørvágsvatn ! Adoro a sonoridade, só a expressão já promete ...

Vamos de Vágar. Nesta ilha das Faroé, aos 62° 5' N, 7°15' W, há dois lagos, dois, um deles bem grande - o lago Sørvágsvatn * - e o outro não tanto, o Fjallavatn (vatn = água). Numa ilha que não ultrapassa 18 km de extensão, um lago com 3.5 km2 é notável. Mas mais notável ainda é a geografia do local: o lago assenta sobre um planalto 40 metros acima do mar, do qual o separa uma alta mas curta falésia, que o impede de se esvaziar para o mar, deixando escorrer apenas uma estreita queda de água, a Bøsdalafossur


Há uma ilusão de óptica incrível causada pela forma da falésia costeira que faz parecer o lago a pairar muito mais alto acima do mar. São só 40 metros .



O lago visto do topo da falésia, no final do trilho.


Passear no trilho sobre a falésia Trælanípa dá uma ideia mais próxima de como a escarpa verde da falésia forma um vaso quase perfeito para o lago, que só verte por uma fenda que parece uma torneira para os deuses marinhos beberem água doce ...


O outro lago, o Fjallavatn, fica mais a norte, rodeado de encostas cobertas de tapete verde, e nem sequer tem estrada de acesso.


Voltando ao Sørvágsvatn: acontece que o aeroporto de Vágar fica junto à margem interior noroeste do grande lago, na povoação de Sørvágur. Foi aí que o artista local Pól Skarðenni, lembrando uma lenda faroense, esculpiu em 2017 um cavalo empinado que depositou no lago a poucos metros da margem.


O que é um Nykur ? Na mitologia nórdica local, é uma criatura marinha que emerge das águas na forma de de um animal cinzento semelhante a um cavalo com os cascos revirados. Assusta os humanos ao surgir empinado na margem do lago, metade do corpo submerso; mas é capaz de assumir formas sedutoras, de grande beleza, desafiando a que o montem. Assim que o incauto lhe salta para cima, fica colado ao dorso e é afogado de imediato pelo mergulho do cavalo. A lenda é invocada muitas vezes para meter medo às crianças de modo que não se aproximem das margens do lago. 

Feito de uma rede de arame enchida com pedras do lago, é de facto algo assustador.

Mas, há um mas, o Nykur tem uma fraqueza: se em voz forte o chamarem pelo nome, a criatura perde os seus poderes e regressa para o fundo das águas.

A narrativa tradicional em Vágar conta que - era uma vez um rapazinho de Sørvágur que viu um Nykur andar às voltas pelo Lago Sørvágsvatn. Espantado com a beleza da criatura, aproximou-se; queria que o irmão Niklas visse também o cavalo, e chamou por ele; mas como era muito novo ainda não pronunciava bem, e o que gritou parecia mais Nykur que Niclas. E assim o cavalo regressou às profundezas do lago.

O rapaz e o cavalo branco, Theodor Kittelsen, 1890-1909

Há outras versões. Curioso é que o Nykur é a variante Faroense / Islandesa de um mito comum aos povos europeus, principalmente os germânicos: o Nix ou Nixie britânico **, o Necker alemão, os escandinavos Näcken, Näkki, Nøkk. Regra geral a criatura é mais como uma sereia da mitologia grega, que com o seu canto atrai os homens para o fundo do lago, tal como a celta Mélusine ou a Lorelei do Reno; noutros casos é um homem, ou um lagarto; a forma de cavalo só vingou na Islândia e Faroé. 

Nykurin, chamam-lhe carinhosamente...

O Nix / Nykur e a cascata nos extremos opostos do Lago.

Gostava de terminar num tom mais ligeiro e agradável; vou mostrar a povoação mais bonita de Vágar, a aldeia de Bøur.


A primeira referência escrita a Bøur data de 1350. 



A igreja é de 1865.

Casa do séc. XVI que faz figura de palacete da aldeia.

Um armazém de 1861, Pakkhúsið í Bø, era a única loja da aldeia, com post de correios; oferece agora alojamento a visitantes.



Abrigos dos barcos de pesca.

Fascinante pedaço de Terra, as Faroé.

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*  ou Leitisvatn
** o Nicor do Beowulf


sábado, 23 de outubro de 2021

Três poemas de Joan Margarit, arquitecto catalão e Prémio Cervantes


Ternura de fundo

Nos velhos discos de jazz também gosto
de ouvir o ruído que vem do público.
Há alguém que grita com voz rouca,
feliz de como estão tocando os músicos.
Há aplausos; um copo partido.
A respiração local nos arredores
de um cidada do Sul. Momentos únicos
que voltam do passado tantas vezes.
Algo assim deve ser a vida
para além da morte: um perdido
rumor de vozes numa noite de música.
E deve ser, a nossa alma imortal,
este instante preciso, frágil e breve, 
em que um copo retine num velho disco de jazz.


               Instantes

               ''Cadolles", diz alguém: uma palavra
               que há sessenta anos não ouvia.
               É o nome das pocinhas
               que ao baixar a maré deixa sobre as rochas.
               O que o mar esqueceu. As palavras perdidas,
               o desolado instante
               quando eras rapaz e tinhas acabado
               a página final d' A Ilha do Tesouro.
               O momento exacto antes de começar um poema.
               E também afinal o instante:
               o primeiro que, quando vier, será depois de ti.

Por trás dos Vidros

Ir embora é esta paixão
que chega tarde. Que pode ser violenta.
Somos parte de alguma música. Varia,
e há que saber ouvir onde nos leva.
Às vezes tem êxitos misteriosos,
mas agora é uma música difícil.
Abstracta e dissonante, impele-me a ir embora
é a sedução final da esperança.
Beethoven surdo ajuda-me a rejeitá-la.
Porque se ilumina ainda o presente
como um enorme diamante de tempo
onde já não estou eu.
É daqui que te amo, porque olha:
continuarei a amar. Não tenho nada mais.
Sou este olhar por trás dos vidros.


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Poças de água esquecidas que o mar deixa nos rochedos...




segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Barrow, Alasca - uma comunidade singular no Ártico americano


Não haverá muitos interessados em viajar para o Alasca, quanto mais para o extremo Norte além dos 70º de latitude. Vejam então, em vez de ir, esta Barrow é muito sui-generis. Todos iguais, todos diferentes.


Barrow é a maior povoação da vasta região administrativa North Slope Borough, Alasca, e a cidade mais setentrional dos Estados Unidos, 550 km a Norte do círculo polar.


Barrow fica numa área litoral de tundra rasa entre lagoas e charcos, e tem sido recentemente inundada pelas águas do Oceano Ártico, cujo nível aumenta em períodos de fusão glaciar mais intensa. É por isso um dos locais de teste e referência para as alterações do clima.

Barrow / Utqiaġvik (ou Ukpeavik)* 

Coordenadas: 71°17′ N, 156°45′ W.
População ~ 4600

Welcome to Barrow (em iñupiaq, Utqiaġvik = "lugar onde as corujas são caçadas")

O "centro histórico", se assim se pode chamar.

O ''centro', com o posto de informação a visitantes, um poste de sinalização de outros sítios longínquos e, atrás, a King Eider Inn.

Uma das casas coloniais de Barrow, agora posto de informação para visitantes.

Em frente, fica a Igreja presbiteriana de Utqiagvik.


Outra das casas mais antigas é a Casa de Refúgio, de 1889, construída para uma equipa de salvamento e resgate em apoio aos baleeiros, além de ter servido como posto de comércio de peles; passou recentemente a alojar o Brower's Café.


Detalhe do menu: não falta nada, a não ser fruta e verduras...

Se há edifício histórico em Barrow é este, construído por Charles Brower, que ensinou novas técnicas de pesca aos Iñupiat.

Junto à praia, um arco feito com dois ossos de baleia e dois modelos de 'umiak' formam com a casa o símbolo de Barrow. 

A economia de Barrow depende do petróleo que é extraído na vizinhança e agora crescentemente do turismo, com os visitantes de Verão à procura do sol da meia noite e de auroras boreais. Uma das unidades de alojamento de visitantes é a King Eider Inn, também local de convívio.

 

Barrow é um centro importante de serviços; dispõe de escola básica e secundária e ainda um colégio para servir a população dispersa de uma vasta área ártica.


A dimensão do posto de correios exprime a sua relevância para a região.

As casas têm de ser construídas sobre estacas para ficarem isoladas do permafrost gelado que é o solo da tundra. Caso contrário, o calor da casa faria o gelo derreter e a casa afundava.

O Oriente depressa lá chegou: um restaurante japonês.

Lavandaria para peles, dos Iñupiat

No armazém AC, as roupas que fazem falta: parkas.

Pescadores Iñupiat lançam o seu umiak no mar de Chukchi.



Caça e pesca ainda dominam o sustento para subsistência. Muitos residentes dependem do fornecimento de baleia, foca, morsa, rena, patos e peixes dos mares e lagos próximos.

O Iñupiat Heritage Center

O Centro do Património Iñupiat é um museu com exposição de materias e documentos da ocupação humana na região, e também oferece actividades de cultura local.


A arquitectura do umiak .



Máscara antiga para a forte luminosidade que o gelo reflecte.

Bola esquimó de Barrow - o jogo da bola já é tradição de há séculos.

Uma das artes tradicionais é a cestaria em junco-de-mar, com pega esculpida em marfim de baleia. Este cesto é de Kinguktuk, Barrow, 1871.

Cesto de Joe Sikvayugak (1898 - 1983)

Os cestos modernos autenticados podem ser carotes.


A música e a dança também têm lugar no Centro:


Mukluks, as botas tradicionais em pele de foca e couro de caribou, enlaçadas com pérola de vidro.

História

A evidência arqueológica mostra que a área tem sido habitada por populações do ártico desde o primeiro século da nossa era.

A aldeia recebeu o nome Barrow em 1826; o explorador inglês Thomas Beechey homenageou assim Sir John Barrow, geógrafo que o acompanhou na navegação. Beechey explorou o Estreito de  Bering a par com as expedições de Franklin e Parry, descobriu e visitou as Ilhas Diomede. Depois continuou para Norte 9 milhas até Point Barrow.

O piloto australiano George Hubert Wilkins faria de Point Barrow um local histórico: após duas tentativas falhadas, foi daqui que levantou voo em Abril de 1928 num Lockeed Vega de madeira, equipado com skis, sobrevoando o Ártico até Spitsbergen (Svalbard). A aventura pioneira durou 20 horas e foi marcante na exploração do Ártico. 

A região de North Slope é agora uma área dedicada à indúsitria de extracção do petróleo. A oriente de Point Barrow são várias as plataformas e centrais em actividade, outro perigo a pairar sobre a população.

Point Barrow fica a 14 km para nordeste de Barrow, e é o ponto extremo norte do país e o fim da única estrada da região. Um Finis Terrae.


Point Barrow é ainda um importante marco geográfico, porque indica o limite entre dois mares do Oceano Ártico, o Mar de Chukchi e o Mar de Beaufort. As águas destes mares só estão aliviadas de gelo durante os dois ou três meses mais quentes. 


Os visitantes recebem um certificado de terem estado no "land's end".

Não será uma praia bonita, mas deve dar arrepios !

E não é para qualquer um banhar-se ne confluência de dois mares.

O Terminal do aeroporto de Barrow, escala vital no extremo Norte.


O sol da meia-noite em ténue lusco-fusco, os umiaks e o arco em osso de baleia  que é 'logo' de Barrow.

Quase me esquecia de dizer que pode haver ursos brancos por perto, ou mesmo de visita às povoações; é necessário um alerta permanente e vigilância atenta em redor. Todo o bem-estar pacato e quase civilizado não pode fazer esquecer que estamos num meio selvagem !




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* A polémica sobre a designação não está resolvida, ainda há ressentimentos...