Tenho de decidir: Gent, Ghent ou Gand ? pois será Gand, que a língua francesa é bem mais bonita que o arranhado neerlandês de Flandres. 'Gante', versão dita portuguesa, é muito feio. De qualquer modo, a etimologia é gaulesa, de Condate (=confluência), acentuada em 'Con', e não de origem germânico-flamenga. Gand fica na confluência do rio Lys (Leie) com o Escaut (Schelde).
Cheguei a uma sexta-feira e o fim de semana foi mau. Suja, e com estaleiros e obras por toda a cidade - incluindo junto à ponte St. Michiels, na catedral, no cais Graslei -, apinhada de turistas que deixam rasto de papéis e garrafas, a primeira impressão foi de uma cidade em catástrofe, nada da bela Gand limpa, sossegada e ordeira que tinha conhecido em 1994... Como as cidades mudam !
Durante a semana, a invasão foi mais reduzida e as ruas limpas. Menos mal. Pouco a pouco Gand foi abrindo recantos de beleza que não tinha observado na primeira visita. Mas primeiro a sala de visitas:
À hora certa, com a luz certa, Gand é gloriosa. Korenlei à esquerda, Graslei à direita, castelo dos Condes de Flandres ao fundo: a vista da ponte de S. Miguel sobre o rio Lys é uma das mais românticas da Europa, a lembrar Praga.
Korenlei, a Rua do Trigo, talvez o mais bonito dos cais do rio Lys. Esplanadas a mais.
Do outro lado do rio, em frente, fica Graslei, a Rua das Ervas; era aqui o antigo porto medieval, que fui encontrar parcialmente 'escondido' com obras, andaimes e guindastes, e pejado de guarda-sóis. Era assim, quando o vi em 1991:
As casas relacionadas com o comércio portuário (de 1200 a 1600): o Armazém de Grão, ao centro (séc. XIII), depois o pequenito Posto Fiscal, a seguir a Casa dos Pesadores de Grão (1435) com o "Big Ben" por trás, e a linda Guilda dos Barqueiros Livres à direita.
Desta vez fotografei detalhes:
A casinha fiscal onde Gand cobrava as taxas portuárias e alfandegárias.
Casa da Guilda dos Barqueiros Livres (Francs-Bateliers).
Muito ornamentada renascença flamenga, de 1531.
Gand não deixou de ser cidade portuária: actualmente o porto fica a Norte da cidade, comunicando com o mar por um canal de 32 km, construído no século XIX, cujos 200 m de largura permitem a navegação até ao porto e Terneuzen, no Mar do Norte.
Mas neste regresso dei mais tempo a outros atractivos: a zona residencial e boémia de Prinsenhof, as béguinages, o núcleo histórico de Patershol, e deambular à noite pelos cais do rio Lys, para um último café. E já não fui rever os Van Eyck que não aprecio por aí além. Preferi "viver" as ruas e as vias de água. A vida de Gand desenrolou-se sempre à volta dos rios e dos canais, até o Castelo dos Condes lá foi edificado:
O castelo dos Condes de Flandres, Gravensteen, uma as "top-attractions", mas de facto uma arquitectura única que vale a visita.
E também o Mercado do peixe:
Agora funcionam no edifício um restaurante e o Posto de Turismo.
Um dos mais pitorescos recantos da cidade.
Foi assim junto à água que Gand cresceu quando era porto de mar (Portus Ganda), quando a indústria dos tecidos e da cerveja - chegou a haver umas centenas de destilarias - transformou a cidade num inferno tal que foi baptizada por um médico inglês como a "Manchester do continente": cheiro nauseabundo, fumo irrespirável, o rio transformado em esgoto...
E é assim agora pela monumentalidade da frente urbana à volta dos cais fluviais. A verdade é que, também pelo passado industrial de grande urbe nos séculos XIX-XX, Gand tem um carácter que me agrada ainda mais que a pitoresca, bonita, pequena Bruges.
A réplica do 'Big Ben' foi construída pelos ingleses em 1913 para uma Exposição Mundial.
A Manhattan da Flandres
O piloto do barco turístico usou a expressão "Manhattan da Flandres", certamente repetida dezenas de vezes por dia. Mas faz algum sentido: o perfil das torres e agulhas góticas vistas da ponte Sint-Michiels permite a alusão. E é muito melhor assemelhar-se a Manhattan que a Manchester !
É indispensável o passeio de barco, que não tinha feito há anos e agora me deu uma visão mais adequada das várias fases que a cidade viveu.
Passeio de barco
O embarcadouro é em Korenlei, não há fila, parte em 5 minutos.
Fachada neo-gótica do antigo posto dos Correios.
O que faz uma cidade: pontes, canais, barcos, torres, janelas, esplanadas... parece um conto das Cidades de Italo Calvino !
Dolce far niente, em Gent.
A florescente indústria de panos deixou uma herança marcante. Enquanto Bruges vive de um turismo de lojinhas de chocolate aos milhares, Gand trabalha e estuda, tem uma dimensão culta e cosmopolita, mais moderna para o bem e para o mal; ser cidade universitária ajuda muito.
Cá está o passado industrial, fonte de ar sufocante e água pestilenta.
O Rabot (1491), a Porta fortificada que resta da muralha que protegeu a cidade. Servia também de fecho para canal Lieve, em tempo de cheias.
O quarteirão Prinsenhof
Pontes é o que não falta, canais obrigam.
Perto do Rabot fica o bairro de Prinsenhof, tal como a antiga Béguinage de que já dei notícia.
É uma área muito tranquila de ruas pedonais ou de trânsito reduzido, onde uma vez por ano acontece uma feira da ladra, a Portobello local, com jazz ao vivo e uma multidão de Gantenses (?) a gozar o sol do domingo.
Sint-Antoniuskaai, 'far from the madding crowd' mas ainda no coração da cidade.
Voltando ao centro: estas são duas das casas mais bonitas de Gand, com a tradicional empena triangular (rococó) de frente para a rua, em Patershol.
Anno 1669.
Também a Arte Nova tem os seus bons exemplares:
Finalmente, as vistas do alto - uma do Beffroi / Belfort , outra do Castelo:
Adorei reviver Gand. É uma festa arquitectónica para os olhos. Cidades assim preenchem a pulsão urbana que sempre tive, mas não sei se gostaria de lá viver, talvez não, agitação a mais. Para viver prefiro cidades como Bath, de beleza mais sóbria e elegante, mais acolhedora como um berço. Ou Ravenna.
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A seguir, Gand à noite - um dos poucos sítios urbanos do mundo onde é um prazer tranquilo desfrutar a cidade a partir do sol posto.
1 comentário:
Gostei muito de Gand mas só lá estive um dia, a "cheirar". Em Novembro era tudo calmo e bastante limpo; se calhar o Mário também tinha estado fora da época alta do turismo.
Gosto das cidades que parecem ter vida própria e existir mesmo quando os visitantes se retiram.
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