domingo, 26 de fevereiro de 2017
Califado kaput
Pensei que ia festejar a "limpeza" de Mosul, como se fosse possível uma guerra limpa. O número de vítimas civis é assustador.
Sem festa, sem alegria, sinto ainda assim uma alívio pelo desaparecimento do pesadelo 'daesh', apesar de tudo é uma vitória das forças democráticas (+ ou - ) e civilizadas (- ou + ). Oh, que maldita realidade esta tão pouco maniqueísta, em que os bons são tão maus, sem que os maus tenham nada de bondade.
Vejamos o lado positivo. Não me parece que haja espaço para nascer outra organização islamista deste calibre. Não vai haver quem queira ser "califa no lugar do califa" (René Goscinny, Iznogoud). Os sunitas radicais vão ficar incapacitados por longos anos, e tirando talvez ataques talibãs no Paquistão, o terrorismo islâmico vai decrescer. Se algum perigo está a espreita, vem da possível mas improvável coligação Irão-Rússia-(Turquia), tão incoerente que até custa a acreditar.
No lado de 'cá', Trump e LePen são a paranóia que se segue. A União Europeia até tem uma boa oportunidade de ganhar peso político, financeiro e negocial, assim queiram os países mediterrânicos e nórdicos aliar-se entre si sob liderança alemã, que remédio. Assim queira a liderança alemã desvalorizar ainda mais o euro e promover o federalismo. Com entusiasmo. É contra a corrente que se deve fazer o maior esforço, não é ? Se prevalecerem os nacionalismos, como parece ser o caso do Reino Unido e França, adeus Europa. É o que querem os extremos, tanto à direita como à esquerda.
Bom. Morra o ISIS, morra, Pim !
Celebração cumprida.
quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017
Almada Negreiros, (2) quadros dentro do quadro
Desenho, pintura, vitral, tapeçaria, poesia, romance e novela, conferência, teatro, bailado até... Almada Negreiros percorria vários caminhos na arte, simultaneamente, sendo nos estudos e artigos de opinião que ele exprimia de forma mais radical - chegando a ser violento e apologista da violência - as suas ideias sobre arte e sociedade.
O tempo relativizou a experiência futurista, que em parte se associou com culpas ideológicas ao pesadelo das guerras e suas indústrias, ditaduras e fanatismos, que arruinaram a Europa Feliz dos anos 20-30. Por mais interessante e até simpática que seja a adesão furiosa ao progresso, à tecnologia e à "libertação do homem" que prometia a geração do Orfeu, a verdade é que desempenhou um papel em última análise criminoso.
Nas artes plásticas, Almada Negreiros era de certa forma mais romântico, ou clássico, enfim, era mais temperado. Muita da sua arte acaba por ser de certa forma 'burguesa', ou seja, o insulto que ele mais odiava. Começo por este painel mural para os Correios de Portugal nos Restauradores.
Os famosos vitrais para o côro da Igreja de Nª Sª de Fátima (1938) são também exemplo de uma perspectiva estética inovadora mas que ao mesmo tempo contemporiza com a tradição, e em que elegância e harmonia prevalecem sobre a provocação.
Detalhes:
Lindo, maravilhoso até, mas algo frio, geométrico, formal demasiado. Cravo.
Alaúde.
Órgão.
Grafite e guache, sem título: atletas a jogar a bola:
Quadro dentro do quadro.
Este detalhe podia ser um abstracto dos anos 30 ou 40:
Mas o meu gosto "burguês" encanta-se mais com outro painel, o célebre "Eros e Psique" de 1954 (Almada tem 61 anos) que está na A.R., sortudos, privilegiados... haverá sítio mais conservador, institucional ?
Almada era, ele próprio, um verdadeiro Arlequim. Multifacetado, mascarado, faceto, enganador. E nem mesmo o Arlequim sabia bem se era ou não era.
Tinta da china, 1931.
Não tinha uma, tinha muitas maneiras de ser moderno, Almada. Nem todas admiráveis, diga-se.
segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017
Almada Negreiros, (1) retratos de mulher
A exposição de Almada Negreiros na Gulbenkian é imperdível, nunca tinha visto a obra plástica de Almada mostrada com esta dimensão e cuidado, e mesmo assim ainda lá faltam outros quadros de igual valor. Há muito que dizer, muito já foi dito e escrito, aqui vou só colocar uma abordagem minha a um detalhe que achei valer a pena focar - a maneira como Almada retrata a mulher.
Não sendo o rosto pintado uma especialidade sua, é magnífico o rosto desenhado em traços minimais, geométricos, ou então estilizado em Art Nouveau, ou mesmo quase a lembrar Matisse. A variedade de estilos e técnicas espantou-me.
Vou mostrar detalhes de quadros, seguindo uma ordem próxima da sua exposição no Museu. Começo por esta preciosidade bem conhecida, num óleo decorativo para a Alfaitaria Cunha (1913):
Almada tinha 20 anos, a 'Arte Nova' entrava tardiamente em Portugal. Progressivamente, o desenho vai-se geometrizando e depurando, enquanto Almada adere entusiasticamente à vanguarda modernista (Orfeu, 1917). Mas será depois das estadas em Paris e Madrid, e já com Sarah Afonso, que ele mais evolui gráficamente.
O estudo para a Engomadeira é de 1938:
'A Engomadeira', 1938, óleo sobre tela
De 1944, este óleo 'Sem Título'
A bailarina de "Arlequim, Bailarina e Cavalo", de 1953, que foi recentemente vendido em leilão:
'Lendo Orfeu 2', de 1954: linhas e planos de aproximação a Picasso, aos 61 anos !
São muito bonitas as gravuras riscadas em vidro, já da fase mais tardia:
Em 1963, Almada tem 70 anos, e a arte mais depurada que nunca.
(excepto a mão, aquela mão que nunca evoluiu...)
Mas é deste retrato de Sarah Afonso (grafite sobre papel, 1938) que mais gosto; estava muito mal exposto na FCG, cheio de reflexos no vidro, por isso coloco a minha foto e outra tirada da net:
Aqui o pintor está em plena maturidade criativa, bem conhecedor dos seus limites mas com inspirada ousadia. Maravilha.
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Para ter uma ideia do que faz falta na exposição:
https://www.pinterest.se/fabioavidal/jos%C3%A9-de-almada-negreiros/
- A seguir: (2) quadros dentro do quadro
quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017
Anna Bolena no São Carlos: bravo !
Tinha lido textos desde o mais negativo - Jorge Calado, arrasador - ao mais positivo - no Público, Pedro Boléo a dar **** - sobre a produção de Anna Bolena, a ópera de Donizetti, que esteve no São Carlos. Fui ver, no último dia. Por fraca que seja, pensei, a cenografia é de Graham Vick, para a Arena de Verona, e Elena Mosuc tem uma carreira meritória... Arrisquei.
Detesto, como já várias vezes disse, aquelas encenações modernas que situam a música num contexto disparatado, tipo roupa interior, ou homens de jeans e metralhadora, ou concurso de TV, que preferem uma estética de fealdade chocante e polémica a uma figuração consentânea com a época em que a trama se desenrola. Foi o caso da horrenda Manon Lescaut recentemente em Londres.
Pois desta vez gostei, gostei das opções de Graham Vick, mesmo que às vezes mal adaptadas ao palco do São Carlos. Combinou materiais e estética modernos, mas dentro do sóbrio - vidros, cortinas, fundo preto e plataformas avermelhadas - com roupas sumptuosas, sedas bordadas, brancas ou coloridas, próprias de uma corte do século XV. A iluminação tirou partido das transparências e sombras.
No São Carlos, Leonardo Cortellazzi foi um Percy convincente.
O contraste entre o fundo minimalista do cenário com os figurinos é esteticamente agradável, e acentua o contraste entre a bruteza do fundo das manobras reais e a dor e humilhação inflingidas às mulheres, a Anna sobretudo; mas a encenação de Vick tem a virtude de não "diabolizar" Henrique nem "angelizar" as damas: mostra uns e outros como duplamente vítimas e culpados, embora com sortes diferentes.
Henrique VIII e a sua justiça entre Percy e Anna: quem é inocente, quem é culpado? plataformas que se cruzam...
As tonalidades de vermelho e negro parecem uma escolha adequada que resulta em favor da dramatização. Só me irritou o despejar de confettis despropositado, a imitar neve, e a cena de caça com o casal real a cavalo, num 'kitsch' demasiado estático.
Nunca antes tinha visto ao vivo esta ópera, portanto não tenho termo de comparação, a não ser com outras óperas do romantismo italiano. A música de Donizetti é muito elaborada, intercalando miniaturas de melodia que não chegam a ser árias na corrente quase contínua do canto. Nada a ver com a melodia contínua, ou infinita, que Wagner inventou para matar de vez a ópera. Esta constante variedade melódica e harmónica ajuda ao agrado imediato - a Anna Bolena fez sucesso na estreia em Milão e logo de seguida por toda a Europa. Há momentos fracos, menos conseguidos, mas não é "aborrecida" como Jorge Calado escreve; pelo contrário, é das mais musicais e teatrais que conheço, ao nível do melhor Rossini. Concedo que não tem senão uma grande ária, daquelas memoráveis para a eternidade, "Al dolce guidami castel natio", que é o clímax da cena de locura de Anna. É uma peça fabulosa, belíssima, e Elena Mosuc esteve muitíssimo bem - prostrada no chão, cantou como uma diva para nossa comoção e grande aplauso. Foi mesmo inesquecível, quer o canto, quer a presença, quer o cenário, com um vidro estilhaçado por trás, ideia de génio para simbolizar o estilhaçar dos sonhos (de Anna) e da moral cortesã - Henrique e Jane Seymour também aparecem a casar nos estilhaços. Muito bom.
Com uma musicalidade destas, que teatralidade ? Foi um ar que lhe deu: a movimentação e gestualização, a coreografia enfim, foi de uma pobreza franciscana, os protagonistas cantores ficaram quase sempre estáticos e impassíveis nos seus papéis. A excepção mais meritória foi o pajem e harpista Smeton (Lilly Jørstad) que também mostrou uma bela voz de meio-soprano e foi a maior surpresa, e ainda o tenor Leonardo Cortellazi que, sem deslumbrar, esteve sempre à altura de forma entusiástica e ajudou a dar muita vida a Percy. Estes três formaram quanto a mim uma bela equipa, não de topo, claro, mas quem dera muitas vezes no São Carlos gente a cantar assim, bem melhor do que é hábito.
Sim, Elena Mosuc faz sonhar com a DiDonato ou a Devia, mas quase se equipara a Netrebko - tem um timbre agressivo e abusa do fogo de artifício vocal; felizmente teve momentos de fulgor que me entusiasmaram - espantoso 'Guidici ! Ad Anna!' - e valeram a noite. Quando se concentra e se refreia, como foi opinado no Fanáticos da Ópera, consegue o seu melhor.
Numa coisa concordo com Jorge Calado: a orquestra esteve muito bem, precisa, incisiva e romântica quanto baste. Talvez de mais, por vezes abafou o canto, mas nada de grave.
Estive uma noite entregue ao destino trágico de personagens históricas, posto em texto e música com alguma sabedoria e muito dramatismo, e encenado com criatividade plástica. Já não é mau de todo. Saí de bem com o São Carlos, por uma vez. Assim está certo, Bieito não.
Em concerto no Lisinsky de Zagreb* (2014) , Elena Mosuc no Al dolce Guidami.
*gravação de má qualidade, é o que há.
segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017
John Ruskin, também quase-génio da pintura, um Vitoriano ilustre e azarado
John Ruskin (1819-1900) foi um intelectual e crítico de arte importante do séc. XIX inglês, no reinado de Victoria, grande admirador e promotor de Turner e dos pré-rafaelitas, e ele próprio pintor de mérito, mesmo que pouco reconhecido.
Auto-retrato de John Ruskin
Viajante pela arte europeia, entusiasta da arquitectura gótica italiana, escreveu - numa prosa sofisticada e elegante - um excelente livro sobre palácios e igrejas em Veneza, ‘The Stones of Venice’. Percorreu incansavelmente toda a arquitectura gótica em França, Itália e Alemanha. O estilo neo-gótico surgido na era Vitoriana foi em grande parte devido a esse entusiasmo de Ruskin.
As famosas palestras sobre arte e sociedade que Ruskin tornou um hábito em Oxford eram um sucesso tal que muitas vezes tinham de ser repetidas. Em 1869 obteve uma prestigiosa nomeação para a Universidade, onde dois anos depois abriu uma escola de desenho, actualmente documentada no Museu Ashmolean. Outra parte da sua obra está no Museu Ruskin em Coniston, no Lake District, onde se isolou nos últimos dias de vida, desgostoso da feia industrialização que assolava as grandes cidades.
John Ruskin pintava sobretudo aguarelas, a maioria durante as viagens.
Trees and Pond, 1832, obra de juventude
Château of Neuchatel at Dusk, 1866
View of Amalfi, 1884 - talvez a sua melhor obra
Old houses on the Rhône Island, Geneva, 1863
Oxford Christhurch from St. Aldate, 1842
La Merveille, Mont Saint Michel, 1848
Ruskin fazia sobretudo imensos desenhos do que ia observando em viagem:
Fonte de Trevi, Roma
Palácio Ducal de Veneza, a obra que mais admirava, simbólica do gótico italiano.
Ruskin teve uma vida privada atribulada, uma casamento falhado seguido do caso de Rose La Touche, por volta de 1860, uma aluna irlandesa que foi a sua grande e doentia paixão idealista aos 40 e que havia de o levar à loucura. Muito se especulou (e especula) sobre o assunto, para mal da reputação póstuma de Ruskin.
Retrato de Rose La Touche, por John Ruskin - o seu caso foi a inspiração para a Lolita de Nabokov.
Extracto de um dos estudos de John Ruskin, sobre Turner:
[..] Mas, penso, o mais nobre dos mares que Turner alguma vez pintou, e portanto, o mais nobre alguma vez pintado, é o de Slave Ship, exibido na exposição da Academia em 1840.
The Slave Ship, de Turner
É um pôr-do-sol no Atlântico, depois de uma prolongada tempestade; mas a tempestade já serenou um pouco, e as nuvens de chuva rasgadas e velozes movem-se em linhas escarlate até se perderem no vazio da noite. A superfície do mar incluída no quadro está dividida em duas cristas de enorme ondulação, não muito alta nem localizada, mas como um vasto, abissal levantamento do oceano todo, como se enchesse o peito de um profundo suspiro depois da tortura da tempestade. Entre as duas cristas, o fogo do sol poente cai ao longo do fosso das águas, pintando-as com horrível mas gloriosa luz, intenso e gritante esplendor que queima como ouro e banha como sangue. Ao longo deste caminho ou vale ardente, a agitação das vagas que causa a incessante quebra na ondulação levanta-as em escuras, indefinidas, horrendas formas que projectam uma sombra débil e fantasmagórica para trás, ao longo da espuma iluminada. Não se levantam por toda a parte, mas às três ou quatro juntas em grupos assustadores, caótica e furiosamente, conforme a força submarina da ondulação as compele ou permite; deixando entre si espaços traiçoeiros de águas em turbilhão, ora iluminadas com uma luz esverdeada de lâmpada, ora reflectindo o dourado do sol em declínio, ora aterradoramente tingidas a partir do céu com as imagens indistintas das nuvens em fogo, que se despenham em flocos de carmim e rubro, e transmitem às indomáveis ondas o movimento adicional do seu próprio voo incendiado. Púrpura e azul, as lúgubres sombras no cavo das vagas são projectadas na névoa da noite, que se vai acumulando fria e baixa, avançando como uma sombra de morte sobre o criminoso navio, que luta entre o relampejar no mar, com os frágeis mastros desenhados sobre o céu em linhas de sangue, aprisionado e condenado naquela temível luminosidade que sinaliza o céu de horror, e mistura um jorro de chamas com a luz do sol — e projecta muito longe o desolado suspiro das ondas sepulcrais, encarnando o infindável mar.
Acredito, se estivesse reduzido a sustentar a imortalidade de Turner numa única obra, que escolheria esta. A sua corajosa génese - ideal no sentido mais nobre - é baseada na mais pura verdade, e elaborada com a sabedoria reunida ao longo de toda uma vida; a cor é absolutamente perfeita, não há uma falsa ou mórbida luminosidade seja onde for, e é tão modulada que cada polegada de tela é uma composição perfeita; o desenho é tão preciso como destemido; o navio flutua, torce-se, cheio de movimento; os tons são tão verdadeiros como admiráveis, e todo o quadro dedicado ao mais sublime dos temas e impressões - o poder, majestade e violência mortal do mar aberto, fundo, sem limites.
Aqui:
http://www.readingaloud.org/ruskin/turners-slave-ship.htm
Não faltam na Net artigos sobre Ruskin e o caso La Touche. Falta, isso sim, conhecimento e divulgação da sua arte. Este ano vou a Oxford e espero poder apreciar melhor a obra de Ruskin 'in loco' - no Ashmolean.
quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017
Jantar num terraço toscano, segundo Maugham: como música de Mozart
Acabei de ler um livrinho magnífico de Somerset Maugham, na edição Penguin Classics que aqui referi, chamado Up at the Villa (1941). Passa-se nos arredores de Florença, é o que agora se chama um "thriller", com amores improváveis à mistura, ou seja uma tragédia hiper-romântica sob o signo da morte. Não será por acaso que tudo se passa no início da 2ª grande guerra, quando em Itália ainda se refugiavam austríacos fugidos da submissão ao regime hitleriano. Como de costume, o melhor da história é a narração perfeita e o retrato de mulher - neste caso é Mary Panton, a viver por uns dias numa casa apalaçada, quem se vê numa embrulhada de afectos e fatalidades.
(*)
O que me apetece aqui publicar é este parágrafo em que Maugham descreve o prazer de jantar ao sol-pôr na Toscânia:
To dine there on a June evening when it was still day, and after dinner to sit there till the softness of the night gradually enveloped her, was a delight of which Mary felt she could never tire. It gave her a delicious feeling of peace, but not of an empty peace in which there was something lethargic, of an active, thrilling peace rather in which her brain was all alert and her senses quick to respond. Perhaps it was something in that light Tuscan air that affected you so that even physical sensation had in it something spiritual. It gave you just the same emotion as listening to the music of Mozart, so melodious and so gay, with its undercurrent of melancholy, which filled you with so great contentment that you felt as though the flesh no longer had any hold on you. For a few blissful minutes you were purged of all grossness and the confusion of life was dissolved in perfect loveliness.
Jantar aqui numa tarde de Junho, quando ainda é dia, e depois ficar sentada até que a suavidade da noite a envolvesse gradualmente, era uma gosto de que Mary nunca se sentiria cansada. Dava-lhe uma sensação deliciosa de paz, mas não uma paz vazia onde houvesse algo letárgico, uma paz excitantemente activa antes, com o cérebro alerta e os sentidos prontos a responder. Talvez houvesse alguma coisa naquele ar leve da Toscânia que a afectava de modo que mesmo a sensação física tivesse em si algo de espiritual. Dava-lhe exactamente a mesma emoção que ouvir a música de Mozart, melodiosa e alegre, com a sua subjacente melancolia, que a enchia de um grande contentamento, como se o corpo já não a contivesse. Por alguns minutos abençoados era-se purificado de toda a grosseria e a confusão da vida dissolvia-se em perfeita graciosidade.
[trad. minha]
Mesmo que seja um conceito duvidosos da música de Mozart, tocou uma das minhas cordas sensíveis: talvez o concerto para flauta nº 2 ?
ou a subjacente melancolia do flauta-e-harpa ?
(*) A capa é de André Edouard Marty, um belíssimo ilustrador art-déco que trabalhou para a Vogue.
domingo, 5 de fevereiro de 2017
O quase-génio de William Boyce : Solomon, a Serenata
Where rest at noon, thy bleating care?
Gentle shepherd, tell me where.
Fosse esta Serenata composta por Handel, e era mais uma das suas obras primas, que muito lhe acrescentaria ao mérito. Mas William Boyce escreveu pouco, comparativamente. E mais nenhuma obra deste nível, embora o seu conjunto de Sinfonias seja notável (excelente a gravação de Trevor Pinnock). Para já, fica aqui o primeiro andamento da Sinfonia nº 1, pela New Dutch Academy:
'Solomon, a serenata' foi escrita em 1743, sobre uma peça de teatro de Edward Moore. Teve bastante sucesso, sobretudo pela ária ‘Softly Rise, O Southern Breeze’. Boyce viveu quase sempre em Londres, onde foi organista de prestígio, mas ia frequentemente a Oxford e Cambridge para concertos e festivais de órgão. Em 1758, Boyce chegaria a compositor da corte, sendo depois nomeado organista principal da Capela Real. Foi o topo da carreira, devido à surdez que o impediu de prosseguir como organista. Nessa altura a sua fama era de compositor de hinos de igreja, um conservador no estilo barroco quando já Johann Christian Bach trazia a Londres música "nova", palacial e galante, que agradava mais ao gosto da corte.
O melhor de Boyce é a sua música vocal, odes celebratórias para ocasiões especiais. A festiva 'Solomon' que agora descobri, é tida como a obra maior deste modesto seguidor (25 anos mais novo) de Handel. Chegou a ser mais famosa e requisitada que o Messias ! Uma jóia barroca, transpirando felicidade campestre, de algum fôlego criativo, muito bem escrita numa musicalidade capaz de agradar à primeira audição. Um remédio eficaz para más disposições. Na altura foi escrito que é
“... a fine piece of composition ! It has a number of beautiful strokes of genius, it is fine, it is elegant and sublime….how delicate the airs in it, how charming the melody ! Can anything be more so? Really it is almost impossible.”
A única gravação decente a que tive acesso é a de Roy Goodman, outro injustamente menorizado: de uma imaculada coerência, resultado de muito estudo e enormes cuidados interpretativos, falta-lhe só aquela centelha de coragem inventiva.
Difícil é encontrar vídeos para aqui dar exemplo. O melhor que consegui - é a minha primeira contribuição para o "ano britânico" que a Casa da Música vai tratar tão mal - são estas duas árias, de lirismo campestre.
Ian Bostridge na ária com coro 'Softly rise, O southern breeze':
Softly rise, o southern breeze !
And kindly fan the blooming trees;
Upon my spicy garden blow,
That sweets from every part may flow.
Coro
Ye southern breezes gently blow,
That sweets from every part may flow.
'Tell Me, Lovely Shepherd' - canta Richard Bonsall, ac. piano.
Tell me lovely shepherd where,
Though feed’st at noon thy fleecy care?
Direct me to the sweet retreat
That guards thee from the mid-day heat:
Left by the flocks I lonely stray
Without a guide, and lose my way:
Where rest at noon, thy bleating care?
Gentle shepherd, tell me where.
Finalmente, converti do meu CD para vídeo (com o moviemaker) este maravilhoso dueto, uma celebração de alegria e amor; é um dos meus favoritos:
The Parley of Instruments, dir. Roy Goodman
'Together let us range the fields'
Together let us range the fields
Impearled with the morning dew;
Or view the fruits the vineyard yields,
Or the apple's clust'ring bough:
There in close-embower'd shades
Impervious to the moontide ray,
By tinkling rills, on rosy beds,
We'll love the sultry hours away.
Juntos vamos correr pelos campos
orvalhados de pérolas pela manhã
ou ver os frutos que crescem na vinha
ou os botões em cacho nas macieiras
Ali juntos na sombra embebidos
Impermeáveis ao raio da maré lunar
junto ao regato, em cama de rosas
vamos gozar as horas do sol-pôr.
Todo um programa !
quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017
E então acredito em quê? Vamos lá a ver:
- Em Handel, Mozart, Beethoven, Brahms e Mahler, acredito no que dizem por música. Beatamente, confesso. E quase sempre em Bach também. E noutros às vezes. Mentir por música é absurdo, por isso é que ela é uma linguagem tão nobre.
[ Na Ópera já acredito mais moderadamente, com reservas, pois teatro é arte de mentir.]
- Em Chauvet, Pompeia e Herculano, Ghirlandaio, Rafael, DaVinci, Renoir, Turner, Matisse, Klee, também confio, sabendo que só revelam da verdade uma parte - se, cada um à sua maneira, falseiam a realidade, é com génio, para nosso deleite, e sem fazer mal a ninguém.
Tal como a literatura. Ficção, já a palavra o diz, não fala de realidade. Aqui é o engano elevado ao máximo requinte - a sublime mentira das palavras inventadas. A razão porque mesmo assim gosto de literatura é que nesse caso estamos avisados - atenção! a partir da primeira página, entrou no imaginário do autor. A questão de acreditar não se põe sequer.
- Acredito, sim, na Ciência, com selectivo cuidado. Evito cuidadosamente as pseudo-ciências sociais e humanas. Biologia, Física, Química, Astronomia - sim, têm-me dado gratas alegrias e sabedorias. Não deve haver outros como os cientistas que tão incansávelmente procurem a Verdade - não uma verdade relativa, cultural, tribal, mas a que tem V grande. Contudo há mentiras resistentes, como a dos quatro elementos - água, terra, ar, fogo - que persistiu séculos, a teoria do Flogisto, a geração espontânea só desmentida no séc. XVII, ou a treta de que os antibióticos sejam inúteis contra infecções virais, ainda em vigor.
- E na História ? A História é o Grande Problema. Escrevem-se tantas falsidades históricas que por vezes apetece duvidar totalmente dela como genuína fonte de conhecimento verdadeiro. E depois os factos prestam-se de tal forma a interpretações, quase todas preconceituosas, que acabam por ficar inacessíveis, como ouro escondido sob enorme camada de ganga. Na História não tenho confiança nem acredito - mas faz-me tanta falta que lhe aceito uma fina (muito fina!) camada duvidosa, em volta do núcleo de verdade.
- Na Europa. Eurocentrista, sou. Acredito na Europa, a minha maior crença talvez, sou mesmo fanático europeísta. Se a Europa, como um todo, tivesse de se defender em guerra, daria tudo por ela. Só por ela, quero lá saber de países. Este video diz quase tudo da minha amada Europa.
E pronto, mais nada. Alguns encontram a Verdade na Natureza (Zen, Gaya, etc). Não acredito, ela mente descaradamente, engana de forma traiçoeira; é aliás sobretudo contra a Natureza que se fez a Ciência, procurando desmascarar as suas ruins mentiras, contrariar os seus disfarces e escondidas ameaças. Desde o gravitão e dos vírus até aos buracos negros, passando por nós próprios, que ainda somos uma enorme falsidade !
Religiões, pior ainda; mentiras que o Homem inventou para sua comodidade e consolo.
Como toda a gente, acredito nos que me são próximos e queridos. Mas isso é outra fé, genética e afectiva, onde mentira e verdade não existem porque os valores são de outra ordem.
Fiz deliberadamente uma confusão entre "acreditar" e "gostar". Mas as preferências de uma pessoa não são afinal as coisas onde ela encontra mais Verdade ? Admiro, acredito, sinónimos.
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