sexta-feira, 28 de abril de 2017

A 111 de Sokolov, na CdM


Não vou dar novidade nenhuma dizendo que o concerto de Grigory Sokolov na Casa da Música, no passado dia 25, foi extraordinário, único, e enriquecido com sete muito aplaudidos encores.

Não compreendi ainda as razões da popularidade de um pianista de presença sóbria, discreta, que só ao piano se torna espantosamente expressivo, mas sem ceder ao gosto público por obras reconhecidas ou fáceis - pelo contrário, opta com frequência por obras raramente executadas. Possivelmente é a sua presença anual regular e o brinde dos 'extras' que explica o entusiasmo do público, onde ouvi uma enorme variedade de línguas europeias, desde os óbvios provenientes da Galiza às comunidades germânica, britânica, da Europa do Leste.

O programa deste ano era um luxo:
Mozart
- Sonata nº 16, K. 545
- Fantasia e Sonata K. 475/457
Beethoven
- Sonata nº 27 op.90
- Sonata nº 32 op. 111

A nº 32, op. 111 é, junto com a nº 31, op.110,  obra-prima de culto; uma sonata extasiante, onde Beethoven já sem ouvido se exprime numa variedade enorme de matizes, desde a tristeza e sofrimento à alegria e finalmente à meditação. É 'completa' no sentido de uma totalidade intocável, perfeita, arrebatadora.


[Arietta aos 9:07]

Diz Alfred Brendel , citado no programa de sala, sobre o final da Arietta :
"... o silêncio que se acaba de abrir é mais importante do que o som que nos conduziu até ele".
Como se Beethoven nos dissesse adeus, com um sorriso suave.

Mérito raro, que uma composição musical atinja tal nível que só o silêncio a pode superar. Parece-me que estou perante o Mestre da Música de Joseph Knecht, no Jogo das Contas de Vidro de Herman Hesse, que alcança no silêncio a sabedoria da compreensão do mundo.

E a propóssito, nada melhor para encerrar que um extracto do poema Lamento, desse mesmo Knecht :

Não nos foi dado ser, em permanência.
Um rio somos, que flui e se adapta a qualquer forma
Atravessando o dia e a noite, a gruta e a catedral,
Sempre impelidos pela angústia de ser.


                                    ― Hermann Hesse, Jogo das Contas de Vidro


segunda-feira, 24 de abril de 2017

Uma rua do Porto: a Mártires da Liberdade, entre duas Praças.


Não sou nenhum entusiasta do Porto, nunca apreciei a tradicional sujidade e desleixo, muito menos a linguagem 'vernácula' e atitudes brejeiras; mas tenho de reconhecer que muita coisa mudou, para melhor; a cidade está mais luminosa e bem cuidada - nos arredores do hotéis, sobretudo dos melhores ; está mais convivial e desfrutada mesmo à noite - mas só à volta dos bares de tapas e petiscos; bebe-se melhor, com muita escolha - mas come-se mal, à base de enchidos, comida enlatada e processada, como a maldita "francesinha" ou o horrendo chouriço assado, a não ser que se paguem fortunas pela cuisine gourmet; está mais limpa, finalmente !, mas vêm os grafiteiros sujar o que foi limpo; tem comércio mais variado, muitas lojinhas pequenas, familiares, mas muitas delas vendem lixo sob regateio e é-se mais bem servido num centro comercial.

Um destes dias tive um compasso de espera de três horas e fui da Praça da República, onde desagua a rua dos Mártires da Liberdade, escura, feiosa, descendo até à Praça Carlos Alberto e dos Leões - ou seja: desde um local ainda envelhecido e degradado até um foco alto do turismo, um Porto cosmopolita no sentido lowcost & airbnb.

Depois regressei, e fui rua acima fazendo fotos, a começar na Praça dos Leões; estava um dia glorioso de Primavera e apetecia gostar da cidade.

Os Leões no alto dos Clérigos, com a Lello, a Torre e as Galerias, é um dos sítios 'diferentes' que o Porto oferece.

A frente de cafés, no lado nascente; agora há também quartos para turistas.

O jardim de Carlos Alberto, numa praça agradável. A fachada era do Hospital da Ordem do Carmo, vai ser mais um Hotel de luxo.

Casas recuperadas.


ex-Escola nº 130, freguesia da Vitória.

À saida da Praça para a rua Mártires da Liberdade, a Companhia União de Crédito Popular, agrupando penhores e ourivesaria, desde 1875. Tem 60 000 clientes, mais que nunca.

A primeira surpresa rua adentro será a Livraria Poetria, nas Galerias Lumière (onde 'dantes' funcionou uma sala de bom cinema, o Lumière). As Galerias foram recuperadas recentemente, com espaços comerciais simpáticos à volta de um 'comedouro' central, tudo limpo e arejado.


Livraria Poetria

Montra : livros dos bons, sem atender às vendas nem às modas. Clássicos. Gostei muito e comprei o nº2 da Tlön, pequena edição colectiva de poesia.
Grande título, Tlön !

Logo acima, o sítio mais culto da rua: a Livraria Académica, alfarrabista de grande tradição na cidade.


Entra-se circunspecto, como em local sagrado.

Prateleiras preciosas, e bonitas !


A Livraria Académica foi fundada em 1912 e para aqui transferida em 1913.
Fica de frente para o Largo Alberto Pimentel:


O Largo é o passeio em frente à Fonte das Oliveiras, construída em 1718. Foi remontada neste local em 1823. O elemento decorativo é uma concha que envolve um golfinho.


Um pouco mais acima, numa zona manhosa abandonada ao entulho e onde estacionam carros (mesmo sendo zona pedonal), outro alfarrabista !
http://homemdoslivros.blogspot.pt/

A nova  Homem dos Livros; muito se lê por aqui, será de ter moradores acima dos 50, ou por ter algumas escolas superiores por perto ? Uma delas é de enfermagem, outra de jornalismo, gente pouco dada às letras.

Para variar, outra lojinha antiga, bem antiga,  que já existia quando por ali andei também a estudar numa Faculdade já transferida para outro lado: o Mercado de Cedofeita. Não falta nada.


Alternam fachadas feias ou decadentes com outras bem interessantes.


O 218 tem um portal precioso em madeira decorada, art-déco suponho. É o V5 Bar, com música ao vivo - abre à noite:

E daqui para cima, num ambiente feio e velho, reinam as lojas de velharias.


bric a brac

Numa esquina, a melhor cafetaria/confeitaria da rua - a Confeitaria Royal:

Lá tomei o meu cafézito. As glórias são 'especialidade'.

Continuando a subir a rua,  muitas varandas de ferro corridas, estilo das casas pobres do porto de séculos passados.


E de repente toda aquela estreiteza sombria desagua na luminosa (mas feia) Praça da República e o seu amplo jardim central.

Palmeiras num jardim pouco cuidado, torres da Lapa ao fundo.

Dos bancos à antiga portuguesa gosto, do jardim nem por isso.

Numa praça feia, o correr de fachadas mais interessante é na ala nascente.


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E mais uma vez uma nota literária a terminar: a revista Tlön.
http://tlonrevistaliteraria.blogspot.pt/
Tlön, planeta fantástico imaginário de Jorge Luis Borges, é agora também uma revista literária de periodicidade semestral. Nº1 dedicada ao Sonho, nº 2 à Infância.


Hei-de seleccionar um poema para publicar aqui no Livro.




sexta-feira, 21 de abril de 2017

Estatísticas do blog e algumas curiosidades


Já há muito não mostro aqui os mapas de visitas e de posts mais visualizados. Cá ficam em dia as estatísticas:

O mapa de visitas:

Halló, tveir frá Íslandi!

Aos dois lados do Atlântico - com a Europa de longe à frente, estendendo-se ao oeste da Rússia - seguem-se a costa leste dos Estados Unidos e o Brasil; finalmente uma diminuta audiência asiática. Muito aprecio os dois visitantes da Islândia !

O número de visitas diário oscila entre 50 e 250, aumentando nos dias de nova publicação. Ultimamente atinge uns 80.

Posts mais vistos:

Paul Klee e a Música: quadros que se ouvem ------------------------- 3424
(4 Fev 2012)
O Arminho do Ártico ----------------------------------------------------------2796
(20 Nov 2011)
Oymyakon, o pólo do frio -------------------------------------------------- 2143
(22 Dez 2010)
Voltar às origens, ou - ainda gostas de trepar às árvores ? ---------1860
(19 Out 2009)
Salas de concerto: o KKL de Luzern -------------------------------------1719
(1 Out 2009)
ainda Giotto - capela dos Scrovegni -------------------------------------1598
(4 Mar 2009)
Breve passeio no Douro.----------------------------------------------------1005
(2 Ago 2012)

As páginas mais visitadas sempre me surpreendem. A de Paul Klee está na frente, estou a pensar transformar o post numa apresentação. É verdade que me deu trabalho e ficou razoável. O Arminho do Ártico em segundo, imagine-se, e o pólo mundial do frio Oymyakon a seguir, ainda acima de duas mil visitas. Impossível encontrar um padrão de gostos ou tendências. Depois da anormalidade de 1860 visitas para trepar às árvores..., o KKL de Luzern, a capela Scrovegni de Giotto e um passeio no rio Douro representam melhor o Livro de Areia em três das suas tendências -  música, arte e passeios/viagens. Os livros, ó desgraça, não estão neste top de frequência...

Noto que foi no triénio 2009 - 2012 que obtive mais sucesso. A antiguidade ainda é um mérito... Fui procurar os posts recentes de maior audiência e encontrei, ex-aequo, ambos de 2016 e com 761 visitas:

- A melancolia de terminar um livro.
- Visita a Joan Miró em Serralves, † BPN

Finalmente um post sobre leitura.

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Para dar um cariz mais literário a uma publicação tão estéril como esta, relembro uma citação que aqui coloquei há muitos anos :

"O número de páginas deste livro é exactamente infinito. Nenhuma é a primeira, nenhuma a última.(...) Se o espaço é infinito, estamos em qualquer ponto do espaço; se o tempo é infinito, estamos em qualquer ponto do tempo."


J. L. Borges, O Livro de Areia

segunda-feira, 17 de abril de 2017

Acis e Galatea de Handel pelo Dunedin Consort: um CD excepcional


Bem sei que foi Gramophone Award já em 2010; ainda não tinha ouvido ! É um espanto de obra e de gravação.


Depois da récita na Gulbenkian dirigida por Garcia Alarcón que foi unanimemente aplaudida, fiquei com a curiosidade de ouvir a obra numa boa interpretação historicamente informada. Já houve Gardiner, Robert King (fraquito), William Christie; agora John Butt com os Dunedin Consort. A gravação de Christie era de referência até surgir esta última.

O Acis and Galatea (de 1718, tinha Handel 30 anos) é uma mini-ópera muito alegre, provavelmente um divertimento, recheada de áreas e coros magníficos, com aquele toque especial do contraponto de Handel, com melodias, efeitos sonoros, secções orquestrais em diálogo e trabalho coral em crescendo a várias vozes que mais ninguém consegue de forma tão engenhosa e surpreendente. Foi o maior sucesso de Handel em vida.
Escolhi quatro momentos:

1. O coro 'Wretched lovers'  é (um dos) o ponto alto desta gravação. O trabalho de vozes está um espanto. Começa por parecer polifonia da Renascença, depois Purcell...


2. A mais bela ária de Galatea, 'Heart, the seat of soft delight'
    Galatea: Susan Hamilton

Galatea:
Heart, the seat of soft delight,
Be thou now a fountain bright!
Purple be no more thy blood,
Glide thou like a crystal flood.
Rock, thy hollow womb disclose!
The bubbling fountain, lo! It flows.
Through the plains he joys to rove,
Murm'ring still his gentle love.


Um extra: comparar com  Claire Meghnagi ao vivo, comovente :
[aos 0:27]

Um canto elegíaco.

O mais fraco na gravação dos Dunedin é o Acis de Nicholas Mulroy, com uma desagradável voz; por isso não resisto a colocar antes aqui o excelente Paul Agnew e Les Arts Florissants de Wlliam Christie na popular ária de Acis:

3. 'Love in her eyes sits playing', Paul Agnew. 
Acis:
Love in her eyes sits playing,
And sheds delicious death.
Love on her lips is straying,
And warbling in her breath.

Love on her breast sits panting
And swells with soft desire.
No grace, no charm is wanting,
To set the heart on fire!


4. Termino com 'Would you gain the tender creature', ária de Coridon, do mais Handeliano que existe; canta, lindamente, Nicholas Hurndall Smith:

Would you gain the tender creature,
Softly, gently, kindly treat her;
Suff'ring is the lover's part.

Beauty by constraint posessing,
You enjoy but half the blessing,
Lifeless charms without the heart.


Ou seja:
Conquistarás a meiga criatura,
com doçura, graça  e gentileza;
Sofrer é a parte de quem ama.

Possuindo a beleza pela força,
só se alcança meia  felicidade,
encantos sem vida onde falta a alma.


Genial. Handel no Olimpo com os melhores.


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No youtube:
https://www.youtube.com/watch?v=HOMC7ikEL4I&list=PLkzyBE-GRz60b1MBT5Uq10TbW5Y_OBMW9

quinta-feira, 13 de abril de 2017

Salve Vivaldi & Huw Daniel


Em tempo de Páscoa...

Ontem na Casa da Música houve um momento daqueles onde apetece que o mundo pare e ali fiquemos indefinidamente. Foi a Salve Regina de Vivaldi, cantada benzinho por Mónica Monteiro mas tocada divinalmente pelo 1º violino Huw Daniel e a orquestra barroca dirigida por Laurence Cummings. A parte de violino é preponderante no andante inicial, em íntimo diálogo com a voz, e no vibrante Ela Ergo. Saliento ainda o curto mas belíssimo andante final Et Jesum.

Fica aqui uma boa gravação:

Gabriela Eibnerova, Soprano
Ensemble Inégal


[6:01]
Et Jesum, benedictum fructum ventris tui,
nobis post hoc exsilium ostende.
O clemens, O pia, O dulcis Virgo Maria.


Só um génio como o de Vivaldi me faz ouvir textos destes - posto em música desta forma nem preciso de perceber o que se canta. Música pascal.

Huw Daniel é um músico irlandês que foi formado com os Dunedin Consort, um agrupamento escocês de música antiga de que já aqui falei. Estudou o violino barroco na Royal Academy of Music com Simon Standage. Além dos Dunedin, Daniel também toca nos Sixteen, no King's Consort e na Orchestra of the Age of Enlightenment. É konzertmeister da Orquestra Barroca Casa da Música desde 2004, tocando um violino de Alessandro Mezzadri (c.1720).


domingo, 9 de abril de 2017

Roma (após Paris) de Gogol - nem a bela Annunziata se lhe compara.


Annunziata d'Albano, só o nome é todo um programa de imaginário transalpino, mediterrânico, romano. É a mulher que Gogol descreve em "Roma", uma curta novela que arranca assim num rompante de puro génio:

"Tentem fixar o relâmpago, quando, dilúvio intolerável de luz, fende em ziguezagues um céu cor de seda: assim são os olhos de Annunziata d’Albano."

E continua:

"Tudo nela recorda os tempos antigos, quando o mármore se animava sob o cinzel fulgurante dos escultores. Os cabelos, negros como pez, enrolam-se num duplo diadema de onde escapam quatro longas tranças. Se ela se apresenta de frente, o esplendor nevado do rosto fica gravado no coração para sempre, uma marca indelével. Se a vemos de perfil, emana dessa silhueta uma beleza divina, uma pureza de linhas que desespera o desenhador. Se oferece, vista de trás, a suprema ordenação da cabeleira, a nuca deslumbrante e a majestade das espáduas como nunca se viu na terra, eis outro assombro portentoso. Mas nada vale tanto como aquele minuto em que o seu olhar mergulha no nosso, e sentimos o coração desfalecer. A voz quente tem sonoridades de bronze. A elegância, a desenvoltura, a nobreza dos movimentos deixariam envergonhada a mais flexível das panteras."


Esperava eu portanto um romance de amor tórrido do jovem príncipe regressado a Roma com a bela Annunziata. Mas os protagonistas deste mini-romance de Gogol são duas cidades: Paris, a efémera, e Roma, a eterna. Gogol começa por traçar um quadro entusiástico e exuberante de Paris, onde o príncipe foi passar uma temporada educativa:

"Aí está então essa Paris, cratera em eterna fusão; ( ...) esse bazar, essa feira da Europa ! Pasmado, desconcertado, deambulava ao longo das ruas invadidas por gente de todos os tipos, percorridas por veículos de todos os tipos. (...) Caía em pasmo perante o luxo real de um café; extasiava-se ao entrar nas famosas Passages, entontecido pelo ruído sobre o pavimento de uma multidão compacta composta quase só por gente jovem, encandeado pelo esplendor cintilante dos armazéns onde uma maré de luz desce através do tecto vidrado da galeria; ficava plantado diante dos cartazes multicolores que, aos milhões, nos são lançados aos olhos anunciando os vinte-e-quatro espectáculos e os inúmeros concertos quotidianos. Ao cair a noite, os fogos mágicos do gás iluminaram de repente este encantamento, as fachadas vivamente aclaradas de baixo parecem transparentes, as vitrinas desaparecem, os objectos expostos ganham relevo, como que reflectidos por espelhos para o meio da rua; e foi nessa altura que o nosso italiano perdeu a contenção. Ma questo è una cosa divina ! "
(...)

"Mal saltava da cama, pelas nove da manhã, já se encontrava num magnífico café, revestido de frescos ao gosto da moda, sob revestimento de vidro, de lambris dourados, com jornais de grande formato e um nobre garçon  a curvar á esquerda e à direita entre os habitués, com uma soberba cafeteira de prata na mão. Ali, instalado confortavelmente num divã estofado, degustava como um sibarita uma enorme chávena de café-crème, lembrando-se com pena das lamentáveis salas obscuras e atarracadas dos cafés italianos e da sórdida bottega onde se é servido em copos mal lavados."
(...)

"Do restaurante, corria para o espectáculo, indeciso sobre a escolha do teatro, pois cada um tinha a sua celebridade, actor ou autor, cada um oferecia sempre novidades, desde o drama descabelado até ao vaudeville espirituoso, desmiolado como os próprios franceses, renovado diariamente, criado em três minutos de tempo livre, desopilante de ponta a ponta graças à inesgotável graça dos comediantes."
(...)

"Fazer suceder num só e mesmo dia o despreocupado passeio às comoções violentas da alma, o prazer dos olhos à tensão do espírito, o vaudeville ao sermão, o turbilhão dos jornais ao das Câmaras, o impacto dos concertos aos aplausos nas salas de cursos, o barulho das ruas à cintilação etérea do ballet - que vida inebriante para um jovem de vinte e cinco anos ! Não a trocava por nenhuma outra. Paris era mesmo o sítio mais belo do mundo. Que prazer habitar no coração da Europa, onde mesmo simplesmente caminhando nos sentimos mais crescidos em importância, nos reconhecemos como membros da grande sociedade universal ! "

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Como o compreendo. Talvez hoje Paris não seja essa cidade privilegiada, talvez Itália tenha reconquistado outro brilho universal. E também Gogol nos orienta nesse sentido: o príncipe finalmente acaba cansado, a cidade do frenesim cultural torna-se irritante e fútil, o corpo e a alma pedem repouso - antes desfrutar do Património, da História, das raízes, num sítio de permanência mais que de devir:
- é Roma que chama.


Lá regressado,

(...) " O príncipe mergulhou na contemplação da Cidade Eterna, que se desenrolava a seus pés num deslumbrante panorama. Igrejas e monumentos, agulhas e cúpulas formavam sob os raios de fogo do sol poente uma massa cintilante donde emergiam, solitários ou agrupados, os telhados e as estátuas, os terraços e as galerias. Através dessa fantasmagoria resplandecente, caprichosa como uma lanterna perfurada, dos campanários e dos domos, avistavam-se ora ao perto as formas sóbrias de um palácio, ora adiante a abóbada achatada do Panteão, mais ao longe o contorno esculpido da coluna de Marco Aurélio, sustendo a estátua de S. Paulo, e à direita os edifícios do Capitólio encimados de corcéis e estátuas. Ainda mais à direita, o gigantesco Coliseu dominava um oceano luminoso de telhados; e mesmo ao fundo, um novo amontoado de paredes, casas, cúpulas e pátios, a flamejar sob uma luz incandescente. Nas 'villas' mais afastadas de Ludovisi e Médicis, a negra folhagem dos carvalhos quase petrificados dava uma nota sombria, enquanto os pinheiros mansos de troncos elegantes estendiam por cima uma abóbada de verdura. Banhadas numa luz fosfórica, as montanhas ao fundo espraiavam-se numa cadeia azulada, diáfana, etérea. Nenhuma palavra, nenhum pincel teria sabido mostrar o encadeado dos planos, a harmonia suprema do conjunto."

À beira disto, extasiado, Gogol conclui (também com alguma ironia) :
- qual Annunziata, qual destino secreto, qual Universo, que nada...

Numas poucas dezenas de páginas, fui transportado numa viagem intensa como poucas, através de lugares, de tempos e de pertenças, num enredo amoroso de príncipe e princesa que afinal é amor pela cidade mágica a que pertencem. Fiquei desejoso de lá voltar, a esses sítios.

Lido em tradução francesa, mas foi agora publicada uma edição portuguesa. 


terça-feira, 4 de abril de 2017

Primavera no Parque


Ai está ela.


Fui ao Parque da Cidade confirmar a chegada. Um ligeiro atraso, mas chegou.

As águas estão mais azuis...

E a verdura mais verde...

Há cor nas copas...

...melros no relvado...

abriram as glicínias...

Patos, dois

Gansos, três

e mais patos. Muito primaveril.



Até a sombra é mais sombra !



sábado, 1 de abril de 2017

Um livro precioso:
'The Global City - On the Streets of Renaissance Lisbon'


Não fui nem conseguirei ir ver a exposição do MNAA - Lisboa Cidade Global - e para compensar encomendei o livro em que ela se baseou:


A descrição praticamente inédita da Lisboa renascentsta e a farta documentação de quadros, peças artísticas e mapas tornam o livro um regalo de leitura e futura consulta.

A Rua Nova dos Mercadores era no século XVI a rua nobre de Lisboa - limpa, bem pavimentada, rectilínea e larga, com um passeio corrido em galeria coberta onde se alinhavam lojas de tudo o que era trazido nos barcos - porcelanas, sedas e têxteis finos, cofres de madeira embutida, peças em madrepérola, marfins, pássaros exóticos, especiarias, mapas e livros ... "Podíamos levar para casa, se tivéssemos muito dinheiro, um papagaio ou um tucano do Brasil, marfins da Serra Leoa e livros de botânica..."

Vista da Rua Nova dos Mercadores (anónimo flamengo, 1570-1619), um dos quadros de autenticidade polémica que estiveram na base de todo este trabalho. Mesmo apócrifos dão um retrato interessante da vida lisboeta no séc. XVI.

As casas eram altas e muito estreitas, pouco abertas à luz. No rés-do-chão ficavam as lojas, por cima os apartamentos eram acanhados mas luxuosamente mobilados e decorados.

Os cidadãos e negociantes vestidos de capas negras, os escravos negros é que dão colorido com roupas vistosas.

Na rua vêem-se muitos africanos: uns em trabalho, a acartar água e outras cargas; outros a dançar e a tocar, ou actuando como saltimbancos; outros ainda já promovidos socialmente, a cavalo, talvez ricos... A Rua do Ouro e a Rua da Prata estavam ali mesmo ao lado. Os mercados de escravos também.

Cena de regateio de quê? Preço, qualidade? Juros? Parece ser inverno, pelas capas pesadas e gorros.

Os mercadores eram na maioria Flamengos da Liga Hanseática e Alemães do norte, mas havia também Judeus e Indianos; as empresas, de mão de obra escrava, e os bancos estavam na mão de Judeus.

Africana livre a vender fruta - bem alimentada e garrida ?!

Menos sorte parece ter o aguadeiro (?) também negro, acorrentado.

Vista da Rua Nova dos Mercadores (1517-30), aguarela miniatura do Livro de Horas de D. Manuel I (detalhe).

Nesta gravura de c. 1565 (Colónia), vê-se a Rua Nova por trás do Terreiro do Paço (linha a vermelho, nº 13). Localização óptima para receber as descargas dos navios - do palácio real via-se o movimento do Porto e os mercadores apressados a receber as preciosas cargas.

Alguns objectos da época, do género que muito provavelmente se encontravam nas lojas ou decoravam casa de mercadores ricos:

Dedal de ouro, com rubis e safiras, Ceilão, 2ª metade do séc XVI.

Porcelanas chinesas, 1622-1722.


Cofre em filigrana de ouro.

Conjunto de mesa em madrepérola.

A Rua Nova dos Mercadores era um grande centro do comércio, mesmo à escala europeia. Mas o que mais a distinguia era a proveniência de produtos e de gentes: africanos, asiáticos (indianos, malaios, chineses) e brasileiros.

Aguardemos a investigação sobre as pinturas que estão agora a agitar águas entre os historiadores de Arte: o quadro que o pintor Dante Gabriel Rossetti terá comprado em 1886, Vista da Rua Nova dos Mercadores, em Londres; e Chafariz d'El Rei, que já no final dos anos 1990 gerara controvérsia quando foi adquirido num antiquário de Madrid, e que nem sequer aqui publico por o achar feio, mal executado, com todo o ar de um falso (mau) do século XIX ou XX. Nada disso afecta o extraordinário livro de Annemarie Jordan e Kate Lowe, nem a exposição do MNAA que certamente merece a visita (termina dia 9).

Princess of the Seas, Queen of Empire: va(n)idades.