terça-feira, 30 de abril de 2019

Ningiukulu Teevee, de Cape Dorset


Já há tempos publiquei aqui umas notas sobre a escola Kinngait Studios de Cape Dorset, em Baffin Island, Canadá ártico (-27 a +7ºC), onde eu referia entre outras esta senhora Ningiukulu ('Ning'), uma das principais artistas da litografia inuit.

Com a verdadeira irrelevância, fealdade e mesmo repelência que vejo em quase toda a arte ocidental contemporânea, que deixou de se inspirar na vida e na natureza para se centrar em obsessões e ideologias extremas, esta arte praticamente inocente (naif) acaba por ser um bálsamo; representa em geral a vivência saudável e os mitos fundadores das comunidades nativas do ártico - a fauna e a flora, o gelo e a tundra, as actividades de sobreviência e as narrativas tradicionais. Também o exotismo de uma cultura das partes mais remotas do planeta deve influenciar este meu gosto, de resto muito clássico-europeu.

Os Kinngait Studios

Vou dedicar dois posts a dois desses artistas, começando hoje com Ningiukulu (antes Ningeokuluk) Teevee*, nascida em 1963 em Cape Dorset; mais adiante hei-de publicar também algumas notas sobre a obra de Tim Pitseolak.


As primeiras litogravuras de Ning apareceram na colecção produzida pelos estúdios Kinngait em 2004. A editora Pomegranate, de Portland (Oregon), publicou agora um pequeno álbum com texto de Leslie Boyd sobre a obra dela.

Surfacing, 2005

Sedna (Sanna = profundezas) é uma divindade do mar e dos animais marinhos. O mito assume várias narrativas, mas em geral era uma jovem rebelde que não queria submeter-se ao homem que se lhe estava a impor. Ao sair num kayak para pescar, foi empurrada para o mar; agarrou-se à borda da embarcação para evitar afogar-se, mas golpearam-lhe os dedos até os cortar e ela afundou-se. Enquando descia ao mar profundo, foi-se transformando em meio-humana, meio-marinha. Passou a viver submersa no gélido mar ártico, e a representar e proteger as criaturas do mar, que nasceram dos seus dedos cortados. "Os meus dedos iam-se transformando em peixes, focas, morsas, narvais, golfinhos... fui eu que criei a vida marinha".

Como sem dedos não se pode pentear, a única forma de obter as suas boas graças na pescaria é pentear-lhe os cabelos, tarefa que compete ao feiticeiro (shaman) usando sargaço e ervas marinhas. Sedna é uma figura trágica, aprisionada, por um lado vítima e por outro poderosa. Nalgumas versões é o próprio pai quem lhe corta os dedos com pancadas dos remos e a afoga, o que não deixa de poder dar azo a interpretações freudianas. Noutras versões, é um grupo de rapazes. Há sempre violência "de sexo".

Nestas coisas de mitos criadores e salvíficos é normal encontrar coincidências. Não será Sedna uma espécie de Cristo, que se sacrifica para salvar o seu povo da fome ? A verdade é que o mito de Sedna é o que mais fortemente se opôs à cristianização dos Inuit.

Em Surfacing, é também uma perspectiva de emancipação feminina que vem à tona: Sedna trazendo outra criatura (filha?) a respirar fora de água, livrando-se do destino.

Cross Current, 2005
Nesta outra gravura, é espantosa a dinâmica tridimensional dos cardumes, acentuada pelo fluir do colorido.

Bed of kelp, 2004
Cama de algas, parece repetir os padrões curvos aleatórios dos peixes.

Craddled loons, 2009

Owl's lookout, 2014
Uma estilização com algo de Arte Nova e de estampas japonesas.

Owls in the moonlight, 2007
Impressionante a composição e o jogo de texturas. O Mocho é um tema recorrente  em N. Teevee.

Seasonal Migration, 2007
O amarelado do céu ártico reflectido nos corpos de algumas renas, o efeito parece-me espantoso.

Polar Bear Hide, 2013
As pegadas do urso quase não se distinguem dos flocos de gelo soltos sobre a água, de várias tonalidades. Uma impressão a que poucos de nós têm acesso.

Tundra Waves, 2017

Glowing Kudlik, 2016
O Kudlik (Qulliq) é uma lamparina de óleo usada pelos povos do Ártico. Aqui Ningiukulu parece já a caminho de um certo formalismo e abstracção, dando mais ênfase à forma pura, às texturas e efeitos de luz.

        Não será uma grande arte universal que nos interrogue sobre as
        coisas últimas da vida, como dizem os jornalistas da TV em
        reportagens culturais; é só de uma beleza colorida, refrescante
        e em saudável sintonia com o mundo.

* é frequente a grafia mudar, porque apenas tenta traduzir foneticamente a complexa língua inuit, e essa tradução varia conforme a fonética é de influência francesa ou inglesa.



sexta-feira, 26 de abril de 2019

death? mmm well ... deal !


                                  de Ron Padgett

The Death Deal

Ever since that moment
when it first occurred
to me that I would die
(like everyone on earth!)
I struggled against
this eventuality, but
never thought of
how I’d die, exactly,
until around thirty
I made a mental list:
hit by car, shot
in head by random ricochet,
crushed beneath boulder,
victim of gas explosion,
head banged hard
in fall from ladder,
vaporized in plane crash,
dwindling away with cancer,
and so on. I tried to think
of which I’d take
if given the choice,
and came up time
and again with He died
in his sleep.
Now that I’m officially old,
though deep inside not
old officially or otherwise,
I’m oddly almost cheered
by the thought
that I might find out
in the not too distant future.
Now for lunch.


                               O Contrato da Morte

                               Desde aquele momento
                               primeiro em que me ocorreu
                               que viria a morrer
                               (como todos neste mundo!)
                               tenho lutado contra
                               essa eventualidade, mas
                               nunca pensei em como
                               virei a morrer, exactamente,
                               até que cerca dos trinta
                               fiz uma lista mental:
                               pancada de um carro, um tiro
                               na cabeça por ricochete,
                               esmagado sob calhau,
                               vítima de explosão,
                               cabeça gravemente aberta
                               ao resvalar na escada,
                               vaporizado em queda de avião,
                               definhando com cancro,
                               e assim. Tentei pensar
                               qual delas escolhia
                               se pudesse optar,
                               e concluí, uma
                               e outra vez, por Morreu
                               durante o sono.
                               Agora que oficialmente estou velho,
                               embora lá no fundo não,
                               oficialmente ou de outro modo,
                               sinto quase uma estranha alegria
                               ao considerar
                               que talvez descubra
                               num futuro não muito distante.
                               Agora quanto ao almoço.



Flame Name

I saw my name in boldface type
lying on the ground among the orange and yellow leaves
I had placed there to simulate autumn,
but someone else had placed my name there
and set fire to its edges.
The effect was lovely.
This was not, by the way,
a dream. It was also not
something that really happened,
I made it up, so I could
set my name on fire
for a moment.



Nome em chamas

         Vi o meu nome em tipo negrito
         no chão, entre folhas laranja e amarelas
         que lá tinha posto para simular o Outono,
         mas alguém lá foi por o meu nome
         e deitou fogo às margens.
         O efeito foi bonito.
         Isto não foi, já agora,
         um sonho. Também não foi
         coisa que aconteceu realmente.
         Inventei tudo, só para poder
         deitar fogo ao meu nome
         por momentos.



Poesia masculina e idosa. Provavelmente não será muito popular, este artigo.


segunda-feira, 22 de abril de 2019

Afurada, a aldeia do outro lado


Para variar, dou a ver um sitio 'de cá', aqui memo ao lado do Porto.


Passo muitas vezes na Afurada, a caminho do litoral de Gaia (que à semana é um sossego) para andar na praia ou estar de esplanada com larga vista de mar. Rio e mar, a companhia da água é sempre bem vinda.

A traineira 'Mar Eterno', do único armador no activo, disseram-me.


A Afurada é terra de pescadores. Não tem arte nem elegância. É um sítio muito marcado, enquadrado pelo Douro e pela linda ponte de Egar Cardoso. Ultimamente tem-se modernizado, para melhor e para pior. Um novo mercado, restaurantes à volta, limpeza e qualidade. A impecável Marina, de riqueza ostentatória, estabelece um contraste que pelo menos não desfeou e trouxe receita; já o mostrengo habitacional mesmo sobre o rio, ainda em construção, para novos ricos, brasileiros, franceses ou chineses, é a descaracterização no seu melhor. Mas qual é o carácter ?


Uma das imagens típicas é o estendal ao vento na margem do Douro. Progresso, máquinas? Aqui não.

Entrando na povoação, as casas são em geral pobres e todas parecidas de arquitectura; o que varia é o padrão de azulejo na fachada (alguns bem feios) e a mesa ao ar livre, para bisbilhotar ou saborear uma sardinhada.



O elemento decorativo mais frequente é um azulelo pintado alusivo às actividades do rio.

Dia de sol, dia de lavar e limpar.


Lindas janelas, com algo de art deco.




Uma das fachadas mais invulgares é esta esquina da Padaria.

Painel de azulejo bem bonito.

Falta a sardinha.

Já fumega

Pronto.

Alguém se entreteve a coleccionar por aqui padrões de azulejo, ei-los:


Património, só se for o Palacete de S. Paio:


Uma residência romântica no estilo neogótico, propriedade da Igreja. Também conhecida por Casa (da Quinta) de Santa Isabel.



E subindo o patamar da riqueza, podemos continuar na Marina, que embora seja espaço público é nitidamente demarcado, na frequência e nos preços.



Não se está mal, se for para passear "a ver os barquinhos".


Para a malta da Afurada, e muitos do Porto, o barquinho que interessa é a lancha da Afurada, agora rebaptizada "ferry" !




Seguindo em direcção ao mar, um passeio cimentado convida a caminhadas ao longo do rio.

É nesta zona que se está a erguer o mostrengo residencial de luxo, paredes meias com a Marina. Enfim podemos dizer que, depois da pobreza piscatória, a Afurada está multiclassista. Também está ecológica:


A Reserva do Estuário do Douro (RNLED) fica logo a seguir, um nicho de Natureza atractivo sobretudo ao fim do dia e com maré baixa.



Maçarico de bico amarelo.

A variada fauna voadora inclui guarda-rios, patos, corvos-marinhos, garças-reais, pilritos, maçaricos e rolas-do-mar, tarâmbolas e seixoeiras, piscos-de-peito-azul ou amarelo...

O entardecer na Afurada dá belas fotografias.