sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Óperas a que assisti, umas três dezenas


- alerta: isto é uma memória pessoal, capaz de não interessar a ninguém. -

Típico da senilidade, apetece-me fazer o balanço de coisas; por exemplo, de óperas a que assisti. Que fique já claro que nunca frequentei Bayreuth nem Salzburgo (só fui a concertos) nem Glyndebourne. Na altura em que me podia aventurar, não tinha $, nem € muito menos. Dois bilhetes decentes custavam tanto como tudo o resto junto, viagem, estadia e alimento.

Comecei se bem me lembro no Rivoli do Porto, em 1984, com a Carmen de Bizet que me pareceu fabulosa, com Isabel Mallaguerra na voluptuosa protagonista e Elsa Saque em Micaela. A encenação não era nada má, e saí de tal maneira impressionado que andei a cantar a Carmen (e não só no banho!) por muitas semanas, "là-bas là-bas, dans la montagne". Um bom amigo deu-me um LP (vinil, claro) que rodou até ficar todo arranhado. Esse meu amigo R. fazia pouco de mim por eu ter como personagem favorita a Micaela; passei por essa vergonha, mas a culpa foi da Elsa Saque que cantava tão comoventemente com aquela vozita pequena.

Fartei-me de procurar ópera a "bom preço" em Itália, onde era suposto ser mais popular e acessível. E lá fui no ano seguinte  via Milão (o Scala era fogo) até à Arena de Verona assistir à Traviata de 1985 com a Cossotto. Não era um bom lugar, não era uma acústica decente, mas valeu pela mítica e pelo local...

1986, T. N. São Carlos, Lisboa
O Navio Fantasma, de Wagner
Só me lembro vagamente de ter sido muito mau - o meu desapreço por Wagner começou aqui. Saí no final do 2º acto.

Em 1987 tive o meu único Pesaro, com Rockwell Blake, Chris Merritt e Monserrat Caballé. A viagem foi um pavor, nunca mais chegava, uma aventura sem desfecho previsível, mas consegui. Tantas vozes gloriosas, mas a Ermione de Rossini não me convenceu, era chatinho, e a orquestra era de terceira ordem. Chris Merritt foi o meu herói, voltaria a ouvi-lo no Guilherme Tell.

Decidi que não tinha vida para grandes aventuras operáticas. Tinha de ficar mais por perto e planear melhor os custos, optando antes por bons concertos e museus.

1989
T. N. São Carlos, Lisboa
Aida de Verdi
Encenada por Paolo Trevisi, com um cast que já não recordo nem consegui descobrir na net. Um pastelão enorme, interminável e cansativo, nem sequer muito bem cantado. Claro que a cena do regresso de Radamés com trombetas, trombones e trompas foi avassaladora, como se mais nada contasse.

1991
Grand Théatre de Genève
Guillaume Tell de Rossini
dir. Gabriele Ferro, enc. Reto Nickler
Chris Merritt, José Van Dam, Gregory Kunde, Jane Eaglen
Formidável produção!  O 'Asile hereditaire'  de Merritt foi de arrepiar, os quadros de conjunto inesquecíveis - os pastores, o povo dos 4 cantões, os bailados, e sobretudo a tempestade no lago, à noite, os rochedos sob relâmpagos e trovões; Até ao rallentando famoso do emocionante Grand Finale, o melhor que conheço em toda a Ópera. A récita que mais me emocionou.

1993
Genève, Teatro do Casino
Porgy and Bess, de Gershwin
Excelente produção cénica, e muito bem cantada.

1994
T.N. São Carlos, Lisboa
Orfeo e Euridice
Harry Christophers dirigiu a OSP
Michael Chance, contratenor, fez uma Euridice pobre, sem espessura, para esquecer; a encenação era à quem quer e não pode -  panos azuis a esvoaçar imitando o mar, panos a ondular imitando cortinas, etc.. - o minimalismo no seu pior. As vestes ao menos não destoavam, não reinava o mau gosto.

2000
Teatro Principal de Ourense
Dido e Eneias, de Purcell
Compañia de Ofélia Nieto; orquestra e cenário/cantores partilhavam o palco.
Muito simples e bonito. As vozes não tinham educação lírica mas esforçaram-se por ser expressivas, e a animação do conjunto foi muito gratificante. Cena das bruxas fantástica. Um exemplo de "small can be beautiful".

2001
Porto CCE - Coliseu
Leonora, versão de 1805, de Beethoven
Welsh National Opera, dirigiu Yves Abel
c/ Pär Lindskog, Natalie Christie.
Apesar do desatre acústico do Coliseu, foi uma récita de bom nível - a orquestra o o coro bem dirigidos, e o trio Leonora-Marcellina-Florestan muito bom, vocal e teatralmente.

2001
Porto CCE - Coliseu
Falstaff de Verdi
CPO, enc. Timothy Coleman, dir. Marc Tardue
Paolo Conti, Jeffrey Black, Dora Rodrigues...
Ah grandes cenários. O resto...

2001
Porto CCE - Teatro S. João
The Turn of the Screw, de Benjamin Britten
Enc. Ricardo Pais, dir. Brad Cohen
Uma ópera moderna interessante, psicótica, onde é difícil encontrar canto ou melodia; mas Ricardo Pais fez bom trabalho.

2003
Teatro Principal de Ourense
IL Matrimonio Secreto, de Cimarosa - ópera bufa
prod. Euroscena, enc. Salvador Collado, dir Jesus Castejón
Muito fraquinho, orquestra fresca e esforçada mas de resto mais parecia mau teatro de revista.

2003
Coliseu do Porto
West Side Story, de Bernstein/Jerome Robins
prod. Teatro de Brno, Rep. Checa
Que eu visse, o melhor espectáculo de sempre no Coliseu ! Grande vitalidade, os bailados vertiginosos e o canto adequado e expressivo, Bernstein teria gostado. Trajes e cenários magníficos.

2003
Liceo de Barcelona
Orfeo y Euridice de Gluck
dir Ros Marbà, cen. Andreas Homoki
Jennifer Larmore... Detestei o Orfeu de Larmore. Mas a encenação era uma ideia brilhante, recorrendo a várias formas de dobragem de papel, barquinhos, por exemplo. A orquestra do Liceo é a pobreza que se sabe, e a acústica terrível ! Nunca mais lá voltei.

2003
ROH Covent Garden, Londres
A Flauta Mágica de Mozart
enc. David McVicar, dir. Colin Davis
Diana Damrau, Simon Keenlyside, Dorothea Röschmann
Mágica, foi sim, mesmo vista da galeria. Um prodígio total !

2004
Teatro Rivoli, Porto
A Raposinha Matreira / Cunning Little Vixen, de Janacek
prod. Welsh National Opera, dir Martin André
Uma produção magnífica, linda, mas para canto e música horríveis !
Janacek é outro daqueles que nunca mais.

2004
C.A.E. da Figueira da Foz/ TNSC
La Bohème, encenação de Stefano Vizioli (1996)
Tatiana Borodina, Dora Rodrigues...
Excelente récita. Tudo bem coordenado, visualmente empolgante e bastante bem cantado (sem deslumbre, claro). Valeu pela grande animação e colorido humano.

2005
Coliseu do Porto
A Flauta Mágica de Mozart pela ONP / CPO
dir. Marc Tardue
Nem sei porque lá fui. Tudo, mas tudo, mau. Além da acústica assassina, a encenação e as vozes foram deploráveis.

2007
Ópera Real de Estocolmo
Cosi fan Tutte, de Mozart
Enc. Ole Anders Tandberg
Maria Fontosh, Susann Végh
Fiquei encantado com Végh, o cenário do jardim estava espantoso, boas cenas de conjunto. Uma récita decente mas dentro do mediano.


2008
C.A.E da Figueira da Foz
L'Italiana in Algeri, de Rossini
prod. Aix-en-Provence/TNSC, enc. Toni Servillo
Barbara di Castri, David Alegret
Desta vez as vozes eram de bom nível, mas a encenação e direcção de orquestra pavorosas.

2009
Coliseu do Porto
La Traviata, de Verdi
Ópera Nacional da Moldávia
dir. Giovan Batista D'asta
https://www.youtube.com/watch?v=U91wp5865Tk
Pobre, querida Moldávia.

2010
Ópera de Zurich
Os Mestres Cantores de Nuremberga de Wagner.
enc. Nikolaus Lehnhoff, dir. Philippe Jordan
Matti Salminen, Michael Volle, Alfred Muff, Robert Dean-Smith
Talvez a melhor récita a que já assisti. Nem sou fã de Wagner, mas os Mestres ainda não são demenciais; canto, teatralização, orquestra, tudo ajudou a umas horas de suspensão do tempo. Mesmo com cenários muito desiguais - excelente a viela em escadaria no 1º acto e a fortificação no 3º, mas o 2º acto era uma macacada moderna de fugir.


2011
Teatro Comunale, Bolonha
Don Giovanni, de Mozart
Nmon Ford, Zuzana Marková, Juan Gatell...
Orq. Teatro Comunale di Bologna, dir. Tamás Pál, enc Pier Luigi Pizzi
Muito mau, para esquecer.

2012
Veneza, La Fenice
Rigoletto, de Verdi
dir. Daniele Abbado
Dimitri Platanias, Désirée Rancatore, Celso Albelo
Grandes vozes! Albelo deslumbrante, encenação pobre - esperava mais do La Fenice do que paredes com portas e janelas em papelão.


2014
Valladolid, Teatro Calderón
Clemenza deTito, de Mozart, dir Carlos Aragon
Cenários de superlativo mau gosto ! (Marco Caniti)
Vivica Genaux e sobretudo Yolanda Auyanet salvaram a noite.

2014
Fund. Gulbenkian, Lisboa
Dido e Eneias, de Purcell
MusicAEterna de Perm, dir. Teodor Currentzis
Ana Prohaska, Fanie Antonelou, Eleni Stamellou...
Genial. O meu melhor Dido de sempre, e mesmo que a teatralidade fosse mínima, a expressão corporal e movimentação foram excelentes.

2015
Opera di Roma
I was looking at the ceiling and then I saw the sky, de John Adams
Durante uns minutos é criativo, depois é giro, passado um bocado é repetitivo de mais e finalmente chato, chatérrimo.

2015
Valencia, Palau des Arts
Norma de Bellini
enc. clássica e aceitável de Davide Livermore
Mariella Devia, Russell Thomas...
Uma boa récita, apesar do ultrapassado de cenário e vozes. Prova de que o que foi bom, mesmo estando envelhecido, ainda tem muito para dar.


2016
ROH Covent Garden, Londres
Manon Lescaut, de Puccini, dir. Pappano
Enc. de Jonathan Kent
Sondra Radvanovsky, etc
Que porcaria, na verdade. Eu acho que a culpa é de Puccini: não tinha imaginado que esta ópera fosse tão má, desde a música insuportável até ao texto indigente de Prévost. Os personagens são idiotas, mas a encenação ultrapassou todos os limites do mau gosto, do kitsch mais selvagem. Qualquer coisa de Andrew Lloyd Weber é melhor. Nem Pappano se salvou. Foi aqui que jurei não voltar a Covent Garden.

2017
Usher Hall, Edimburgo
Orfeo de Monteverdi
English Baroque/Monteverdi Choir, dir JE Gardiner
Uma encenação simples mas bonita, vozes adequadas, mas sobretudo a orquestra e os coros !

2017
T.N. São Carlos, Lisboa
Ana Bolena, de Donizetti
enc. Graham Vick
Elena Mosuc, Leonardo Corelazzi...
Contra muita gente, achei a encenação genial, com uma estética requintada e expressiva. A Mosuc não foi por aí além, cumpriu em geral os mínimos com uma ou outra esganiçadela, mas a récita nunca me causou um momento de enfado.



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Umas trinta récitas, portanto. Estou longe, muito longe de ser um fiel frequentador, e lamento não o ter sido quando era mais novo. Falta-me a Salomé e o Rosenkavalier, a Semiramide, o Eugene Oneguin, a Tosca, todo o Handel (Rinaldo, Alcina, Teodora, Semele...).

Posso juntar uma quantas récitas em concerto: Teresa Berganza, Anne-Sophie von Otter, Ann Evans, Julia Lezhneva, Cecilia Bartoli, Carolyn Simpson, Catherine Bott, Anna Larsson, Joyce DiDonato, Iestyn Davies, James Bowman, Andreas Scholl, Francesca Aspromonte...

Próxima: Il Viaggio a Reims de Rossini, em Valencia.




terça-feira, 28 de janeiro de 2020

'Among the Trees', na Hayward Gallery - Árvores que inspiram Arte


Quem aqui vem já se deu conta da minha simpatia pelas árvores, pela floresta, seja na Natureza, na Poesia ou noutras formas de arte. Não sou militante, mas agrada-me intensamente a florestação, gostaria de a ver processada rapidamente e em força. Já recentemente aqui divulguei artistas que se exprimem sobre o tema das 'árvores', num artigo da revista Art North.

Está agora na (muito feia) Hayward Gallery de Londres uma exposição sobre a temática da floresta, da importância das árvores na nossa vida. Obras que revelam criatividade e talento artístico como eu gosto - previlegiando a expressão da harmonia e o gosto pela beleza.

Mariele Neudecker, And Then the World Changed Colour: Breathing Yellow


Floresta tropical, selva japonesa, pomares de oliveiras, bosques escandinavos, uma floresta subterrânea... A exposição vai coincidir com o 50º "Dia da Terra".

Giuseppe Penone, Árvore Porta-Cedro.



Abel RodrÍguez, Terraza Alta II.

Myoung Ho Lee, Tree... #2
Ho Lee enquadra as árvores na sua paisagem, colocando um painel branco de fundo.

Ugo Rondinone, Wind Moon
A escultura de Rondinone é uma árvore de alumínio com 6 metros, esmaltada, segundo uma oliveira de 2 000 anos no sul de Itália.

Este tema é também uma oportunidade para reflectir sobre a passagem do tempo, as mudanças sasonais, e uma duração de vida que execede largamente a nossa - a árvore como condensação do tempo.
Rachel Sussman, Spruce Gran Picea.
A foto de Rachel Sussman mostra a 'árvore mais antiga do mundo', um tronco rastejante de  9 500 anos em Dalarna, Suécia - baptizado Old Tjikko. O tronco erguido é recente (50 anos) mas brotou do Old Tjikko.

Jennifer Steinkamp, Blind Eye 1

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Até 17 de Maio.


sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

A pé de uma Catedral a outra (Winchester a Salisbury) + o equívoco da suástica


No post anterior, relatei um passeio imaginado a partir de uma leitura recente. Vou repetir a marotice, com outra leitura: a de 'A Single Thread' de Tracy Chevalier, que de certa maneira é um livro de viagem.

Violet Speedwell é uma viúva de guerra de meia idade nos anos 30; aos 38 anos sai de casa da mãe em Southampton, e consegue em Winchester um trabalho modesto como bordadeira da catedral. No primeiro Verão de férias, à falta de outro programa, Violet resolve fazer uma caminhada que lhe tinha sido sugerida, partindo de Winchester em direcção a Salisbury através do rural Hampshire. Quase uma peregrinação entre duas cidades marcantes da Igreja de Inglaterra.

Do exterior a Catedral de Winchester parece atarracada e feia; mas quando se entra...


A partir de West Gate, Violet vai percorrer uma antiga estrada romana, rectilínea; depois atravessa campos e campos de milho onde apanha um valente susto, até descansar na primeira estalagem, a John O'Gaunt. Sigamos os seus passos:

West Gate, onde termina High Street, parte da antiga via romana; Winchester ('Venta Belgarum') foi fundada pelos Romanos em 70 DC. 


Após algumas milhas na estrada, monótonas, Violet sente um desejo de aventura. Sobe até cima de uma cancela de travessas de madeira e fica sentada frente aos campos.


"Saltou da trave e avançou por entre o milho, caminhando em passos cuidadosos na estreita passagem que divide a plantação. Os caules do milho chocalhavam e rumorejavam contra os ombros dela, as folhas fibrosas de cor esmeralda arranhavam as mangas do casaco e pontuavam a luz do sol. Olhou para trás várias vezes a verificar se estava só. O ruído e a pressão das folhagem, a sucessão rápida de luz e sombra, desorientavam-na. O campo parecia não ter fim."

Alguém a seguia. Finalmente, a morrer de medo e de sede (é Julho), chega à John O'Gaunt Inn, em Horsebridge Road.

"Quase gritou ao avistar a estalagem John O'Gaunt, uma simples casa branca com telhado de ardósia e janelas com peitoril negro num cruzamento junto ao rio Test. Pouco passava das onze, e o pub podia ainda não estar aberto. Alguém tinha que lá estar, talvez até lhe fizesse um chá, ou uma sanduíche que poderia comer num dos bancos que ladeavam a porta. Alguém que sentisse pena dela."

Conseguiu descansar, e depois seguiu em direcção a Houghton, atravessando o rio Test:



E chega a Nether Wallop. Nunca ouviram falar ? Nem eu. Pensei que era ficção da escritora; não é. Existem três Wallops no Hampshire: Nether Wallop, Middle Wallop e Over Wallop. Há quem ache Nether Wallop a mais bonita aldeia de Inglaterra - é uma aldeia de casas com cobertura de colmo e jardins na frente, muito semelhantes às dos filmes de Walt Disney. Parece cenário.





Violet fica em Nether Wallop a passar a noite, no 'The Five Bells', onde tem encontro marcado; mas isso é outra história.

À saída da aldeia começa Clarendon Way, um percurso pedonal agora muito popular, com marcações para caminhantes.


E finalmente, Salisbury.

Espantoso interior, glória do primeiro gótico inglês (1258), com mármore de duas cores.

Regresso a Winchester.


Para terminar, uma referência à cruz suástica que Violet tem a surpresa de ver no bordado de uma almofada dedicada ao Rei Artur, num padrão repetido a fazer caixilho; estamos nas vésperas da 2ª Grande Guerra, cresce o medo da Alemanha de Hitler.

Existe de início a suspeita de que a autora do bordado, Louisa Pesel, seja simpatizante do nazismo; mas ela sorri e chama a atenção para a estátua do bispo William Edington, numa das capelas funerárias:

Estátua tumular em alabastro de William Edington, bispo de Winchester (1341-1344) e chanceler do Reino. A estola tem várias 'fylfots' alternando com flores.

A cruz gamada vem já de tempos pré-históricos, os povos celtas usavam-na frequentemente. Os ingleses chamam-lhe fylfot, uma antiga palavra anglo-saxónica.

Mas o mais notável na história de Tracy são os complexos bordados das almofadas de Louisa Pesel:


domingo, 19 de janeiro de 2020

Roteiro de Veneza 'chiusa' - as igrejas fechadas e o jardim interdito.



A procura não é original, mas as igrejas fechadas de Veneza são o móbil obsessivo do mais recente livro de Jean-Paul Kauffmann. Intrigado pelo número (mais de quarenta) e pela misteriosa razão do seu fecho - algumas abrem durante a Bienal de Arte, outras só de madrugada, outras só para grupos com Guia autorizado, outras nunca - e desafiado pelo silêncio opaco do Patriarcado quando instado a dar explicações e conceder autorizações, Kauffmann não desistiu enquanto pôde e assim acabou por conseguir visitar algumas. Vale a pena ? Procurei na net imagens para ilustrar a busca e complementar a leitura. Afinal, acabei por descobrir outras belas coisas 'escondidas' em Veneza, valeu a pena por isso.

Eu gostei muito de ler L'Arche des Kerguelen, um relato de turismo de aventura nas míticas ilhas francesas do Pacífico, lugares de um aliciante desconhecimento geral. Desta vez Kauffmann foi aventurar-se em Veneza, focado num roteiro alternativo, também este de lugares desconhecidos. A Veneza que também eu nunca vi.

Zattere e os Gesuati vistos da Giudecca, do outro lado do canal

Num texto demasiado palavroso e erudito - enfeitado de memórias, referências e citações - sobre as peripécias  para conseguir autorização de visita, as primeiras oportunidades surgem por acaso. Da janela da casa onde está alojado, na Giudecca frente aos Gesuati, um dia vê ao longe a Igreja de Sta Maria delle Visitazione e nota algo de diferente: a porta aberta ! Corre ao vaporetto para atravessar o largo canal mas quando chega a porta aberta é só o portão da rua - no átrio de entrada as portas de acesso ao interior continuam fechadas.
A pequena Sta Maria della Visitazione

Mais falhanços se seguirão: Sant'Anna, na zona do Arsenal, onde consegue entrar de golpe pela folga no cadeado que se abriu devido à degradação da madeira da porta: lá dentro não há literalmente nada, só paredes nuas e andaimes de segurança, uma visão deprimente.

Sant'Anna di Castello, igreja de presídio.


Outra aventura foi a visita a Santa Maria del Pianto. Igreja fechada cercado por um jardim murado, caso único em Veneza.


No muro, Kauffmann acaba por encontrar uma fenda para espreitar: lixo no jardim. Ouve vozes numa língua do Leste - há ali ilegais acampados. O abandono é total, dentro da Igreja não deve sobrar nada, só madeira carcomida e paredes cobertas de fungos. Mais uma procura inútil.

Depois de alguma hesitação em desisitir, deu conta de trabalhos que decorriam à porta de San Lorenzo em Castello; e foi ver. San Lorenzo fica belamente enquadrada por canal, ponte e fachadas venezianas, mas é uma igreja pesada e feia, parece  arquitectura prisional, austera e com janelas semicirculares gradeadas. Consta que Marco Polo lá pode estar sepultado.

San Lorenzo, feiíssima mas num enquadramento de sonho, em Castello.

A porta está entreaberta, e aproveitando de golpe a 'boleia' de algum pessoal que entra, Kauffmann esgueira-se discretamente para o interior. Fica por momentos paralisado pelo inesperado: no chão, um buraco enorme, que parece um poço; em frente, um altar barroco com uma arcada impressionante, encimado de esculturas.

Interior: a arcada e o poço.


A sensação é de perda, de um espaço vibrante a que foi retirada a alma. A luz e sobretudo o eco dos ruídos metálicos na acústica do enorme espaço vazio são as impressões mais intensas, até ao momento em que é detectado como estranho e convidado a sair.

Muitas outras visitas serão conseguidas mas decepcionantes, pela ruína e esvaziamento do interior: Le Terese, Penitenti, Santa Croce, Soccorso, San Nicolò dei Mendicoli...

A estratégia de contactos alternativos obteve nalguns casos mais sucesso que a autorização do Patriarca; Kauffmann consegue a abertura de San Lazzaro dei Mendicanti, em Cannaregio igreja integrada num Convento que agora faz parte do Hospital Civil da cidade.

A fachada da Igreja - Convento dá directamente para o canal.

O complexo conventual é enorme, e no interior há de facto várias igrejas ! Depois de percorrer corredores e pátios, dá-se com a "fachada interior" de San Lazzaro.

Vestíbulo e segunda fachada.

A Igreja só abre para cerimónias fúnebres no Hospital. Entrando, finalmente, Kauffmann ficou na penumbra perante Tintoretto e as lendárias 11 000 virgens. Um choque.

Sant'Orsola e le undicimila vergine

É verdade que poucas pessoas visitam esta igreja; mas em rigor ela não está fechada - está semi-fechada... o portão da fachada exterior aberto, mas o da interior só para funerais.

O santuário monumental a Lazzaro Mocenigo

Parece um cofre de jóias. Não é bem o lugar secreto, abandonado, misterioso, que Kauffmann procura. Ele aprecia em particular a zona onde Hugo Pratt situou a visita de Corto Maltese a Veneza: entre o Arsenal, uma área deprimida e ignorada pelos turistas, e Cannaregio. Por exemplo, a ver o poço da Misericórdia, no Campo de l'Abazia:

A Igreja da Abadia da Misericórdia, em pedra de Ístria (1659), restaurada por fora, é agora local de exposições.

Il Pozzo, também em pedra de Ístria.

A Scuola Vecchia della Misericordia, em mau estado, é um belo edifício gótico de 1308 anexo à Abadia.

Um dos recantos mais belos, em Cannaregio. 

Foi aqui que Tintoretto pintou 'Il Paradiso', o enorme mural da Sala do Conselho no Palácio Ducal.

Campo de l'Abazia, o poço de Maltese e a Scuola Antiqua, com a fachada gótica segura por agrafos.

Em 1583 foi construída do outro lado do canal a Scuola Nuova, de exterior austero. Um dos contactos alternativos de Kauffmann, uma jovem restauradora, convidou-o para um encontro nessa que é uma das seis 'Scuola Grande' de Veneza.

A sala térrea já é espectacular, dividida em três naves por uma dupla série de 12 colunas, e frescos de Veronese:

Um espaço utilizado para exposições e eventos.

Mas quando Kauffman sobre à Sala dei Confratelli, é um deslumbramento:

Frescos de Veronese nas paredes. É a segunda maior sala de Veneza, depois do Palácio Ducal.



Uma bela descoberta! Não é uma igreja, mas é um tesouro interdito aos turistas.

Como esta há outras coisas interessantes por onde o livro passa. Por exemplo, o Palazzo Labia é propriedade... da RAI ! Mesmo tendo um Tiepolo no interior, está vedado ao público e serve para recepções e eventos mediáticos. Enfim.

"O Encontro de António e Cleópatra", obra prima de Tiepolo fechada ao público pela 'pública' RAI. Só arranjando um conhecimento ...

Detalhe. Genial. O desenho, as atitudes, a composição, António !

A sumptuosa escadaria do Palácio Labia

O Jardim do Éden , na Giudecca, é outro lugar lendário em Veneza, até pelo nome; nunca 'ninguém' o viu a não ser de fora, claro. Só se entra por convite.

O Palazzo é propriedade da família Hundertwasser, um pintor naïf austro-neo-zelandês.

Recriado em 1884 pelo inglês Frederick Eden, ficou famoso por ter sido frequentado pela fina flor da cultura fin-de-siècle.


Entre os que visitaram e escreveram sobre o jardim contam-se Proust, Rilke, Bernard Shaw, D’Annunzio, Hemingway, Tagore, Cocteau, Henry James.


Magnólias, cedros, ciprestes, loureiros e carvalhos. E roseiras, muitas.



Vista do jardim para o exterior.

Veneza já foi dada como estragada e perdida vezes sem conta, pelo menos desde o séc. XIX. Tal como o Planeta e a 'catástrofe' climática, o anúncio da sua decadência é prematuro. Cada vez mais bela, com mais motivos para ser visitada, e com cada vez maiores esforços para protegê-la.

Canale della Giudecca: Veneza única e eterna.

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Não será um grande livro, mas proporcionou-me um raro prazer de descoberta:

Jean Pierre Kauffmann, Venise à double tour
Ed. Équateurs, Fev. 2019
http://veniseadoubletour.tumblr.com/