terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Kópakonan de Mikladalur, II - a lenda

(continuação do post anterior)

Kópakonan , a mulher foca, é a variante nórdica Faroense das Sereias greco-europeias - Ondina, Melusina, a Selkie celta, a Rusalka eslava, a Lorelei germânica.

Segundo uma tradição antiga das Ilhas Faroé, na décima terceira noite do ano era permitido às focas subirem a terra, tirar as peles e assumir a sua existência humana, divertindo-se a dançar e a brincar. 

Um camponês da aldeia de Mikladalur, na ilha de Kalsóy, intrigado e querendo verificar se era verdade, foi deitar-se na praia à espera numa tarde de décimo terceiro dia. Viu as focas a chegar em grande número, a nadar para a costa. Juntaram-se na praia, despiram as peles e pousaram-nas cuidadosamente nos rochedos. Pareciam mesmo pessoas normais. O rapaz fixou a atenção numa jovem rapariga foca que deixou a pele pertinho dele, e quando a dança começou gatinhou uns metros e roubou-a. A dança e os jogos continuaram toda a noite, mas assim que o sol espreitou sobre o horizonte todas as focas correram a vestir as peles para voltar ao mar. A rapariga foca ficou aflita sem ver a sua, mesmo que o seu odor ainda pairasse no ar; então o rapaz de Mikladalur surgiu com a pele, mas não queria devolver-lha, apesar do desespero dela, e foi assim obrigada a segui-lo até à quinta.

Viveu com ela muitos anos como esposa, e ela deu-lhe muitos filhos, mas ele teve sempre o cuidado de não a deixar ter acesso à sua pele. Manteve-a fechada num baú de que só ele tinha a chave, chave essa que trazia sempre num cadeado preso ao cinto.

Um dia, quando estava no mar à pesca com os companheiros, deu conta de que deixara a chave em casa. Anunciou aos companheiros, pesaroso, "Hoje perdi a minha esposa !"  – e explicou o que acontecera. Os homens puxaram as redes e as linhas e remaram para a praia o mais rápido que puderam, mas quando chegaram à casa da quinta encontraram as crianças sozinhas e a mãe ausente.  O pai sabia que ela nunca mais voltaria, pois tinha apagado a lareira e arrumado todas as facas para prevenir que as crianças não se magoassem.

De facto, quando ela chegou à praia vestiu a pele de foca e mergulhou nas águas, onde uma foca rapaz, que a tinha amado desde sempre e ainda esperava por ela, surgiu a seu lado. Mais tarde, quando as crianças que ela tinha tido com o homem de Mikladalur viram um dia até à praia, uma foca emergiu das águas observando a terra; as pessoas naturalmente pensaram que era a mãe. E os anos passaram.

Depois um dia aconteceu que os homens de Mikladalur planearam entrar a fundo numa das cavernas da costa para caçar focas que lá viviam. Na noite anterior, a mulher-foca apareceu ao marido num sonho e disse-lhe que se ele fosse à caça na caverna, tinha de ter cuidado em não matar a grande foca macho deitada à entrada, pois essa era agora o seu marido. Nem devia ferir as duas crias de foca mais no fundo da cave, porque eram seus filhos, e descreveu as suas peles para ele não se enganar. 

Mas o camponês não deu atenção à mensagem do sonho. Juntou-se aos outros, e mataram todas as focas que estavam à mão. No regresso, dividiram a 'apanha', e o camponês recebeu o grande macho e as patas  trazeiras das crias.

À tarde, quando já estavam cozinhadas algumas partes das focas para jantar, houve uma grande estrondo na sala de fumo, e a foca-mulher apareceu na forma de um aterrador troll; foi cheirar a comida nas calhas e berrou uma maldição: ‘Aqui está a cabeça do meu marido com as sobrancelhas, a mão do Hárek e o pé do Fredrik! A vingança vai ser medonha, vingança contra os homens de Mikladalur, uns vão morrer no mar e outros cairão do topo dos penhascos, até haver tantos mortos que possam de mãos dadas dar a volta às praias da ilha de Kalsóy!"

Assim que pronunciou estas palavras, desapareceu com um grande trovão e nunca mais foi vista. Mas ainda hoje, infelizmente, acontece de tempos a tempos que homens da aldeia de Mikladalur se afogam no mar ou caem das altas falésias; o que deve ser motivo de grande preocupação é que o número de vítimas ainda esteja longe de que todos possam com as mãos dadas perfazer o perímetro da ilha de Kalsóy.


Mikladalur e a sereia - I




Volto às aldeias rurais dispersas nas ilhas Faroé, com as suas casas de madeira pintadas de preto e cobertura de relva.

Actualmente são todas servidas por estradas e muitas têm heliporto, o isolamento já não é o que era quando as ligações só se faziam por mar; nota-se, por exemplo, no facto de em muitos destes locais haver aojamento e restauração e mesmo obras de arte de escultores sobre temas do folclore faroense.


Mikladalur fica no alto de uma falésia, com acesso ao mar por uma rampa. Mas ficou mais famosa por uma bela escultura em bronze da lendária Mulher Foca, uma sereia nórdica, em pé sobre as rochas ao nível do mar, face a uma queda de água lá do alto.

 

Mikladalur é antiga, relativamente: já é mencionada por escrito em 1298, na contagem de ovelhas e cães da ilha. Mais tarde, em 1584, há um livro de registo de proprietários que menciona também a primeira assembleia da aldeia, no adro da Igreja, em 1646. 

Após séculos de agricultura e pastorícia, Mikladalur converteu-se no século XIX num portinho de pesca, bem situado próximo de alguns bancos de pesca. Cresceu mesmo com gente que veio de outras aldeias para se dedicar à faina do mar. Outra actividade nessa época era a caça de aves, que trazia uma receita importante à aldeia. A estrada chegou em 1980, e a vida mudou desde então. Até um café já lá abriu.

Mikladalur, ilha de Kalsoy

População: ~30
Coordenadas: 62° 20' N, 6° 46' W


A igreja actual é de 1856



A forja do ferreiro Nornðástova, casa de pedra pintada de vermelho com cobertura de relva, foi um centro de actividade na ilha, ensinando a profissão a muitos aprendizes. Fabricava ganchos e arpões para a caça às baleias, facas, foices e até armações de óculos.


A forja fechou na década de 1970, mas o forno e a roda ainda funcionam, agora protegidos por um coberto. Mantém-se na família Norðnástova.

Também há um moínho de água no ribeiro que desce pela aldeia. Todas as aldeias da ilha tinham um, para moagem de grão - cevada e milho. 


Kópakonan, a Selkie de Mikladalur.

A lenda de Mulher Foca das Faroé foi eternizada em bronze com uma escultura de Hans Pauli Olsen em 2014, num rochedo baixo ao lado do portinho da aldeia. O enquadramento é espectacular.


Deixo a lenda para publicar no próximo post, aqui

Outra originalidade de Mikladalur é um pequeno bosque; já se sabe que nas Faroé as árvores estão ausentes na natureza, só as há em plantação. Por isso esta florestazita é uma atracção:


Nas Faroé, a linha das árvores fica a cerca de 200 m acima do mar. Esta plantação foi feita a 100 metros de altitude, a sudeste da aldeia, nas margens do curso de água que ali desagua. Foi iniciada em 1953, e compõe-se de pinheiros de duna, lariços do Japão e variedades de abeto.



Kallur, o promontório a norte da ilha Kalsoy


A metade norte da ilha de Kalsoy eleva-se mais de 200 metros acima do mar. No pico Nestindar, atinge 788 m.


Penhascos escarpados cobertos por camadas de verdura erguem-se em direcção a um céu que parece fundir-se com o mar. 


O percurso pela crista da falésia até ao Farol de Kallur é tão perigoso como irresistível.



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Curiosidade: é aqui que James Bond "morre" atingido por mísseis, no '007 -  NoTime to Die'.




domingo, 12 de fevereiro de 2023

Estatísticas: os mais vistos desde a pandemia + o Mar de Irminger


No Mar de Irminger, à saída do estreito da Dinamarca.

Desde 2020 que as visitas a este blog desceram drasticamente, andando agora entre 25 e 50. Uma miséria. Consegui algumas excepções, e aqui vai a lista das mais visitadas:

O Estreito da Dinamarca, em 6/8/21 ......................218

Emily Dickinson, rascunhos, em 5/1/20 ..................213

Labirintos nórdicos 'Troy Town em 10/5/20.............185

Ponto Nemo em 6/12/20 .....................................180

Cy Twombly em 1/5/20.......................................165

Robin Hoods Bay em 12/1/20 ...............................152

(entretanto, posts mais antigos continuaram também a acumular visitas; Paul Klee, o mais visitado de sempre, tem 5 334)


No ano passado, 2022, o record vai para Nijmegen (Noviomagus), com ... 53 :(

Hoje, como extra, sirvo um texto sobre uma incursão no Mar de Irminger a bordo do navio oceanográfico Knorr, 'Into the Wild Irminger Sea', por Dallas Murph:

"Os ventos de 100 km/h atingem rajadas acima de 130, mas o navio Knorr vai de encontro às ondas com audácia, escalando para o céu até à crista, afundando tranquilamente no fosso seguinte. Muros de água azul-negra sem fim, cobrinhas brancas de espuma a deslizar por elas abaixo, as altas cristas a quebrar sobre um precipício líquido.

É uma visão marítima de violência extrema , de uma beleza estarrecedora, um privilégio para quem assiste - na segurança da ponte de comando do Knorr. (...) A sul do estreito, estendendo-se desde a Islândia até à latitude do cabo Farewell no extremo sul da Gronelândia, este é o Mar de Irminger - a mais ventosa extensão de água salgada do globo. (...) As suas poderosas, vertiginosamente complexas correntes, a emaranhada topografia do fundo marinho, e a tendência para congelar, desafiam quem pretende compreender estes reinos aquosos setentrionais.

A estreita passagem às portas do Círculo Polar Ártico é um gargalo naquilo que Pickart, um oceanógrafo a bordo do Knorr,  chama "super-autoestrada" na circulação global dos oceanos - a rota principal para as águas fluírem para sul , do Oceano Ártico para o Atlântico Norte, uma componente do que é refrido como Circulação Termohalina.

Em cada segundo de cada dia, a corrente do Atlântico norte, uma ramificação da Corente do Golfo,  transporta uns 15 milhões de metros cúbicos de água 'quente', muito salina, ao largo da costa ocidental da Irlanda e Reino Unido, dando origem às incongruentes palmeiras da Cornualha, Segue para a Noruega, onde larga o calor para a atmosfera e onde garante os seus portos livres de gelo no Inverno, quatro graus a Norte do Círculo Polar.

Ora, para que uma certa quantidade de água corra para Norte, é preciso que seja equilibrada por uma igual quantidade que corra para sul. Quando as águas mais quentes do Golfo perdem o calor por evaporação, arrefecem e tornam-se mais densas, afundando-se nas profundas bacias dos mares nórdicos acima do Estreiro da Dinamarca.

(...) Sob as águas do Estreito há plataformas continentais rasas, a apenas algumas centenas de metros de profundidade, que se estendem para leste da Gronelândia e oeste da Islândia e quase se juntam, deixando um canyon entre elas. Criam uma barreira no fundo oceânico que separa os mares a norte do Mar de Irminger a sul, que tem mais de 2 000 m de profundidade. As águas frias que descem do norte precipitam-se subitamente ao longo de uma íngreme encosta submarina. Não é uma queda tão abrupta como as do Niágara, mas é uma catarata submarina de um volume de água milhares de vezes maior que todas as quedas de água da Terra juntas. Seria uma visão espantosa.

O mar ainda executa mais outra manobra: puxa as águas circundantes e acumula-as numa vasta corrente de fundo para sul, que se cruza por baixo com a Corrente do Golfo, ao largo do cabo Hatteras."




sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Larysa Petrivna, a poetisa que conforta num boulevard de Moscovo

 ------  baseado num artigo de Benoît Vitkine no Le Monde de 28 de Janeiro  ------

Larysa Petrivna é o nome verdadeiro da poetisa ucraniana Lesya, Леся Українка (1871-1913), que ainda é lembrada em Moscovo numa estátua situada numa avenida nobre e central, ainda denominada 'Ukrainska Boulevard'. Não será por muito tempo, parece-me, pois é ali que alguns cidadãos vão depositar flores na derradeira manifestação possível de solidariedade em Moscovo. Flores, mas não só: peluches, brinquedos, velas acesas, aos pés da Lesya dos ucranianos, promovida quase a divindade.


Desda o bombardeamento de Dnipro a 14 de Janeiro, este passou a ser o ponto de encontro dos que se opoem à "operação especial". Escreve Benoît Vitkine:

"É um exercício terrivelmente solitário. Uma mulher avança, tem dois cravos vermelhos na mão. Ajoelha-se demoradamente, e quando se levanta tem os olhos inchados de lágrimas e a respiração ofegante. Nada de teatral, não é representação. As únicas testemunhas visíveis são dois polícias a alguns metros, num veículo de lâmpada rotativa acesa. A respiração ofegante é da dor e do medo."

Le Monde, 28/1/2023

"Quando se dá conta de nós jornalistas, precipita-se com o smartphone estendido: 'tirem-me uma foto, para eu mostrar aos que não acreditam que ainda é possível.' (...) É no filho que ela pensa ao depositar as flores: 'não quero que ele viva num país parecido com o Irão, não quero que crianças ucranianas da idade dele continuem a morrer. '(...) 'Eu tinhe de vir, também por mim, para me poder respeitar, para que o mundo saiba que nem todos os russos apoiam este horror.' Ninguém sabe quem levou o primeiro raminho; depois desse, muitos outros se seguiram , apesar das detenções. Todas as noites, as flores desaparecem, levadas por desconhecidos; cada dia, a pequena montanha de flores é reconstituída."


" Numa só hora, neste dia 24 de Janeiro, quatro pessoas vieram depositar ramos, e depois retiraram-se; outras hesitam; uma mulher aproxima-se e recua ao ver a polícia; um jovem dá várias voltas à estátua, como que a apalpar o terreno; uma mulher mais corajosa pergunta em voz alta: 'temos direito a colocar flores ?' O polícia encolhe os ombros."


Sobre Lesya:

http://athena.pt/2021/05/14/a-potente-voz-de-lesya-ukrainka-ukrainka

https://www.unesco.org/en/articles/lesia-ukrainka-path-love-fight-and-hope


Sapho


No topo da rocha, sobre as ondas 
uma bela jovem se queda
coroada de refulgentes louros 
tem nas mãos a melódica lira

E é uma canção de tristeza
que ela agora na lira acompanha 
ao coração lhe sobe uma  mágoa 
que lhe pesa na voz ao cantar

Fala da majestosa glória
Lembra a beleza do mundo, 
a gente perversa, o amor
 e a traição, os anos de lástima.

Esperança e desespero... a jovem
dilacera a coroa de louros
e no clamor das ondas do mar 
encontra o fim da canção.
                                 
                                                       Lesya Ukrainka, 1884

[tradução combinando traduções francesa, inglesa e espanhola]

A escravidão ainda é mais ignóbil quando é livre.