domingo, 6 de junho de 2010

crónica delirante

deus mora num hospital às 3 da madrugada

No meio de ais e uis do pós-operatório, os sedativos davam-me intervalos de paz. Numa das piores noites, farto de me remexer na cama (sempre com o cuidado de não torcer as costas), levantei-me cambaleante, abri a porta e vim ver o mundo normal cá fora.

Banho de luz suave, corredores azuis nas quatro direcções , com alguns carrinhos de material arrumados de quando em quando. Silêncio absoluto. Conforme recomendação prévia, caminhei erguido e a passo lento uns metros naquele ambiente quase sagrado. A dor estava lá, mas menos presente, distraída. Ouvi uns fru-frus: um enfermeiro saira do balcão da noite a ver quem era. Acenei um OK. Mais uns 20 m, e já estava na altura de me sentar - fui à sala de espera, deserta, tão limpa, e com cadeiras de braços - como eu precisava - e com buraco na parte de baixo do encosto para as nádegas - como eu precisava. A manobra de sentar demora sempre 30 s mais uns ais e uns uis. Ah, a máquina de café era Lavazza, será possível?

Finalmente relaxado, deixei a cabeça passear por onde lhe apetecesse. E o que me surgiu tão presente, tão irrefutável, foi a bondade, a protecção, a dedicação de que eu era alvo naqueles corredores azuis à média luz. Eu, o 430, e todos os outros, estávamos sob cuidado de uma equipa cujo único propósito era minorar o sofrimento e fazer-nos passar o melhor possível. Ao toque de uma tecla, vinham pressurosos mudar-nos de posição, dar talvez mais uma porçãozinha de sedativo, calçar umas meias ou ceder os ombros para que nos pudéssemos apoiar. Sempre sorrindo, sempre vagarosamente. Um gelo para as costas, uma manta que tenho frio.

O enfermeiro de há pouco aproximou-se vagarosamente, talvez intrigado - este nem com Valium dorme , já passa das 3 ? Começamos a conversar. Não sei se dá para acreditar, mas estivemos para ali a contar as nosssas vidas. Ao fim, já com sonito, levantei-me apoiado nele e regressei à cama. Não sei de mais nada.

Já de manhã, veio-me perguntar, então, dormiu bem? Passei lá pouco depois e estava tão sossegado...

Por isso é que eu digo: esse tal deus, é capaz de existir: mora num hospital às 3 da madrugada.

Enfermeira Rita, enfermeiro Fernando, enfermeira Raquel, a recibos verdes, o que vocês fazem vale o vosso peso em ouro.

NOTA: este é um post estranho e circunstancial. Não gosto de olhar tanto para o meu umbigo. Não tenciono voltar a maçar ninguém com o assunto.

5 comentários:

Alberto Velez Grilo disse...

Mário

Que bom lê-lo de novo por aqui.

Uma rápida recuperação.

Um abraço
Alberto

Paulo disse...

Mário, mace e desabafe. Agora já vai dormindo melhor?

Gi disse...

Amigo Mário, não maça nada. Escreva sobre o que lhe apetecer, é bom lê-lo.

Além disso, revelamo-nos sempre com o que escrevemos, não é?

Continuação de melhoras.

Fernando Vasconcelos disse...

Não creio que tenha maçado alguém. É verdade que o conforto está em pequenas grandes coisas como as que relata. Infelizmente sei disso por experiência recente própria ... As melhoras rápidas.

Mário R. Gonçalves disse...

Obrigado Fernando,

O conforto que refere , para mim, não era só conforto, eram coisas maiores - era a bondade de uma instituição, uma équipa, uma atitude, uma ciência, que se se repetisse por esse mundo fora faria uma humanidade feliz.

A sua experiência, se não é indiscrição, correu bem?