domingo, 30 de dezembro de 2018
'Erinnerung', de Rilke, para mais um ano que passou
Este poema de Rainer Maria Rilke, 'Recordação', é impossível de traduzir decentemente, como já se comprovou pelas tentativas. O ritmo e a forma têm de se perder em favor da fidelidade ao significado. Mesmo assim, depois das consultas possíveis, achei que podia fazer melhor; e como está em causa a frustração de mais um ano que passou sem trazer nada de especialmente bom, vem a propósito da quadra, e aqui fica:
Erinnerung
Und du wartest, erwartest das Eine,
das dein Leben unendlich vermehrt;
das Mächtige, Ungemeine,
das Erwachen der Steine,
Tiefen, dir zugekehrt.
Es dämmern im Bücherständer
die Bände in Gold und Braun;
und du denkst an durchfahrene Länder,
an Bilder, an die Gewänder
wiederverlorener Fraun.
Und da weißt du auf einmal: das war es.
Du erhebst dich, und vor dir steht
eines vergangenen Jahres
Angst und Gestalt und Gebet.
Recordação
E tu aguardas, esperas o Único,
o que irá ampliar ao infinito a tua vida;
o Poderoso, o Invulgar,
o Despertar das Pedras,
a Profundeza que se te abre.
Escurecem na biblioteca
os volumes em castanho e ouro;
e tu pensas em países percorridos,
em quadros, nas vestes
de Mulheres mais uma vez perdidas.
E então de súbito percebes: era isso mesmo.
Ergues-te e diante de ti estão
Angústia e Forma e Oração
de um ano que já passou.
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Que o novo ano venha no mínimo ao encontro das melhores expectativas que acalentamos. Paz.
sexta-feira, 28 de dezembro de 2018
Susan Graham, 'La Belle Époque' - canções de Reynaldo Hahn
As canções de Reynaldo Hahn marcaram (e estão muito marcadas por) os anos de paz entre duas guerras conhecidos por Belle Époque - entre a guerra Franco-Prussa e a 1ª Grande Guerra. Foi, como agora vinha sendo com a construção da União Europeia, uma época de bem-estar e esperança no futuro, de renascimento cultural e de confiança na humanidade; pensava-se a utopia dos Estados Unidos da Europa. Tudo foi arruinado por uma quezília mesquinhamente nacionalista e um assassinato contratado. Tem graça, não lembra nada? Ucrânia, Crimeia ? Sérvia de novo ? O caso Skripal ?
"No século XX, a guerra irá morrer, a forca irá morrer, o ódio irá morrer, as fronteiras irão morrer, os dogmas irão morrer, o Homem viverá."
Victor Hugo, 1879 , discurso no Congreso de Marselha.
Esse intervalo de 1870-1914, uns escassos 44 anitos, foram 'anos de ouro' da cultura francesa. Foi a Arte Nova, foi Gauguin, Matisse, Toulouse-Lautrec, Monet, Rodin. Em Viena, a Secessão com Klimt e Otto Wagner. Na literatura, os últimos anos de Victor Hugo, Proust, Baudelaire, Thomas Mann (que já anunciava o desgraçado final e a chegada da guerra). O excesso foi dado pelos poetas Simbolistas: Baudelaire, Verlaine, Rimbaud - quase-surrealistas. E o Cabaret, sim, o Cabaret parisiense nos seus anos de glória. Na música, a opereta era a correspondência adequada,
Neste ambiente, Reynaldo Hahn ganhou prestigio como compositor de canções 'fáceis' mas 'cultas', que o público feminino adorava. Musicava sobre poemas simbolistas - Verlaine, Daudet, e Victor Hugo o precursor.
Uma exaltação trágica ultra-romântica, quase religiosa mas naturalista, inspira os poemas que Reynaldo Hahn escolheu para conquistar popularidade. Aqui ficam três exemplos, numa gravação de 1998 da mezzo-soprano Susan Graham - no melhor período da sua voz - com o pianista Roger Vignoles. Para acabar o ano em beleza.
À Chloris
L'énamourée
(...)
Ta voix pure, cette lyre,
Suit la vague sur les ondes
Et, suave, les effleure,
Les effleure, suave,
Comme un cygne qui se pleure!
Ainda mais melancólica,
Je me souviens
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Aproveitar enquanto se pode: mais dia menos dia, se o artigo 13 for aprovado, deixamos de poder partilhar estas coisas na net.
segunda-feira, 24 de dezembro de 2018
E um livro para oferecer: Poemas de Robert Frost, na edição Sterling
Depois da prenda de Natal em CD, a prenda em livro: o mais bonito que este ano folheei foi uma selecção de poemas de Robert Frost editada pela Sterling, New York (2017), com ilustrações (xilografias) de Thomas W. Nason. É dos tais livros que dá gosto ter nas mãos e percorrer devagarinho.
A Patch of Old Snow
There's a patch of old snow in a corner
That I should have guessed
Was a blow-away paper the rain
Had brought to rest.
It is speckled with grime as if
Small print overspread it,
The news of a day I've fogotten
If I ever read it.
The Telephone
"When I was just as far as I could walk
From here to-day,
There was an hour
All still
When leaning with my head against a flower
I heard you talk.
Don’t say I didn’t, for I heard you say—
You spoke from that flower on the window sill—
Do you remember what it was you said?"
“First tell me what it was you thought you heard.”
“Having found the flower and driven a bee away,
I leaned my head,
And holding by the stalk,
I listened and I thought I caught the word —
What was it? Did you call me by my name?
Or did you say —
Someone said ‘Come’ — I heard it as I bowed.”
“I may have thought as much, but not aloud.”
“Well, so I came.”
A Time to Talk
When a friend calls to me from the road
And slows his horse to a meaning walk,
I don’t stand still and look around
On all the hills I haven’t hoed,
And shout from where I am, What is it?
No, not as there is a time to talk.
I thrust my hoe in the mellow ground,
Blade-end up and five feet tall,
And plod: I go up to the stone wall
For a friendly visit.
Quando um amigo me chama da estrada
E abranda o passo em modo convivial de montar,
Não me fico quieto, passeando o olhar
Por todas as colinas de terra não lavrada,
Nem grito de onde estou, É comigo ?
Não, e não porque há um tempo para se falar.
Enterro a sachola na terra amolecida,
Lâmina para cima, cinco pés de altura bem medida,
E marcho: sigo até à vedação empedrada
Para uma visita de amigo.
[tradução minha]
The Road Not Taken
(...)
Two roads diverged in a wood, and I -
I took the one less traveled by,
And that has made all the difference.
Bom Natal e um Ano Novo com excelentes leituras!
sexta-feira, 21 de dezembro de 2018
O melhor CD para dar de prenda ?
À Portuguesa (em parte)
Surpeendente, esta gravação da Orquestra Barroca Casa da Música, dirigida por Andreas Staier. Não estava à espera de tão elevada qualidade quer na prestação da Orquestra liderada pelo excelente violino Huw Daniel, quer no som do cravo em que Staier também intervém como solista. Suponho que que a acústica da Casa também deu o seu contributo.
Assisti ao concerto que reproduziu esta gravação, conforme relatei aqui. Na sala, o cravo mal se ouvia, mas no disco é um prazer estar atento à execução de Staier destas obras alegres, para divertimento palaciano.
Para mim, o mais duvidoso até é o conhecido 2º Concerto para cravo de Carlos Seixas que Staier dirige num corridinho acelerado, ao contrário de um vagar mais solene a que eu estava habituado noutras gravações. Torna-se mais evidente o virtuosismo de compositor e executante, mas quanto a mim houve exagero, pedia-se mais gravitas. Já o primeiro concerto de Seixas, em La maior, é uma inesperada inclusão que valoriza o disco.
O ponto alto, tal como aconteceu no concerto, não é português mas italo/ibérico: a famosa Musica Notturna de Boccherini que já referi num post anterior. Staier conseguiu uma reinterpretação de génio, com mais energia e alegria, com mais colorido orquestral, que supera quanto a mim a gravação de Jordi Savall e passa a ser a nova referência. A alternância de instrumentação, dinâmicas, ritmos e melodias proporciona uma audição muito viciante.
Duas notas:
- À Portuguesa (Alla Portugesa) é o título de uma das obras incluídas nas Bizzarie Universali do inglês William Corbett (1680-1748).
- Duvidoso, o gosto da capa (painel de azulejo? ), mas como era de recear o feérico colorido do galo de Barcelos... vá lá... ;D
terça-feira, 18 de dezembro de 2018
A noite mais longa, a noite das Boas Festas
A partir desta altura, o Ártico está sob noite permanente, quando muito com um ténue clarão que só dura minutos. Viver meses seguidos na escuridão - a acrescentar ao frio, vento e neve - é coisa que hoje ninguém aguenta, nem os povos nativos das regiões polares já acostumados a algum conforto; agora há aquecimento e iluminação, lojas e cafés, alguns hotéis. E muitas aldeias têm a sua árvore de Natal para comemorar não se sabe bem o quê, sabe-se que é uma festa sazonal, sabe-se que luzes acesas combatem a depressão da longa noite, sabe-se que se aproxima a mudança de ano e depois, em Fevereiro, o sol reaparece. E dar prendas também agrada, é sempre reconfortante.
Na Escandinávia, o Yule (Jul) já se comemorava ao tempo dos Vikings, com muita comida e bebida, talvez para armazenar energias. A prenda mais esperada eram troncos de árvore para lenha, que não abundava. Mas na Gronelândia não há tradições nenhumas de Natal entre os nativos Inuit. Então porquê a árvore, mesmo 'pobrezinha', importada forçosamente num país onde não as há?
Kangaamiut, Gronelândia, 65º N
Acontece que a festa aproxima do resto do mundo, é bonita, aquece a alma e quebra tanto a brancura gelada como o negro da noite - quando não há luar, claro, pois a noite ártica com luar é bem luminosa!
Correio do Pai Natal em Uummannaq, 70º N. Imensas cartas para tão pequena população.
Já em Sisimiut, 67º N, uma árvore mais vistosa teve direito a Pai Natal de guindaste e tudo, perante a aldeia em peso. Lindo de ver.
Yuletide ou Natal , que tenham muito Boas Festas os que aqui aparecem.
sábado, 15 de dezembro de 2018
Ulukhaktok (Holman), aldeia inuit com arte na llha de Victoria, Canada
Mais uma visita virtual ao Ártico remoto.
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O Arquipélago Ártico do Canadá, região do Nunavut, foi intensamente explorado por navegadores britânicos no século XIX, sob o reinado auspicioso da Raínha Victoria; uma das ilhas, a 'Victoria Island', é de tamanho mediano (ainda assim a oitava maior do mundo), com cerca de 200 000 km², povoada escassamente por apenas duas aldeias nativas inuit: Cambridge Bay e Holman.
Holman foi rebaptizado com o nome nativo Ulukhaktok ("lugar onde existe material para ulu”) em 2006; fica na costa ocidental, região rica em cobre, razão porque os famosos machados ulu são lá fabricados. Campo de golfe na tundra (diz o painel), é a brincar.
Faca ou machado ulu, que os inuit usam para cortar as carnes.
Ulukhaktok fica numa planíce costeira rodeada de montes.
A pequena aldeia cresceu em volta de uma baía, gelada a maior parte do ano.
População: aprox. 450
Coordenadas: 70° 44′ N, 117° 46′ W
(quase 500 km acima do círculo polar)
Como é habitual nas comunidades do Ártico, caçar, capturar (com armadilha) e pescar são as actividades dominantes. A fauna terrestre inclui raposas e ursos, bois almiscarados e caribus, mas sobretudo espécies marinhas.
A rua principal.
As casas, em regra de madeira com reforço isolante, são construídas sobre estacas; à porta há em quase todas um ou mais cães esquimós.
A 'nova' igreja anglicana
A famosa companhia britânica Hudson Bay Co, que instalou dezenas de entrepostos para o negócio de peles à volta da Baía de Hudson, começou por se estabelecer, em 1923, na margem norte do Prince Albert Sound; desde 1939 mudou-se para Holman, que nasceu de um pequeno posto e uma igreja.
A igreja original, da era Hudson Bay Co.
Desactivada, é edifício histórico da aldeia.
Visto da escola, o nascer do sol no final de janeiro, cerca das 11.30. Neste caso, nasce em parhelion (triplo sol).
O Ártico no que tem de único.
Biatlo com sapatas de neve - dois atletas de Ulukhaktok vão estar presentes nos Jogos de Inverno do Ártico (AWG).
Como outras comunidades inuit da região, Ulukhaktok tem o seu Inuit Arts Centre, onde mantém e renova formas artesanais como escultura em osso, gravura, tecelagem e bordado.
Litografia e impressão a relevo em pedra são as técnicas mais usadas. Escolhi alguns artistas locais e algumas das suas obras:
Mary Okheena (n. 1957)
Muskox in a storm
Young bull at play, 2003
Ice fishing, 1989
Mary Okheena é presença obrigatória na colecção anual de obras impressas de Holman. Okheena é já da terceira geração de artistas gráficos organizados no Centro de Arte local. Combina a tradição inuit dos antecessores com influências do Sul e do Ocidente.
Helen Kalvak (1901-1984)
Helen Kalvak levou uma vida de permanente migração durante o século XX; estabeleceu-se em Holman desde 1960.
Fishing
Acrobatics
Susie Malgokak (n. 1955)
Travelling by night fall
Racing downhill
Outra técnica usada é escultura em osso ou marfim da fauna local.
Escultura em corno (anónimo).Detalhe:
Ulu, por Ron kalak
Brincos Ulu, de Mary Jane Nigiyok
A Ilha Victoria
A ilha é quase toda pedregosa com tapetes de tundra rasa, sem floresta, só com alguns arbustos anões. A costa é muito recortada, com fiordes e enseadas, penínsulas e ilhotas. Alguns montes sobressaem, e o rio Kuujjua com canyons que atraem aventureiros de kayak; mas na primavera toda a desolação se transforma em cor, com musgos e líquenes e algumas variedades floridas, como a muito emblemática Purple Saxifrage presente em quase todo o Ártico.
Salgueiro ártico (Salix polaris), um arbusto de 10-20 cm.
Uma manada de Musk Oxen (boi almiscarado) em formação de defesa na ilha Victoria.
Uma Saxifraga púrpura florida.
O rio Kuujjua nasce no centro da ilha, de início um fiozinho de água, serpenteia suavemente pela tundra, percorre uns 350 km ganhando velocidade e volume à medida que atravessa terreno mais rugoso, apertado em canyons entre rochedos de basalto. Vai despejar no estreito do Príncipe de Gales, em Minto Inlet.
Primavera na tundra junto ao rio, com o monte Pelly ao fundo.
Pelly foi governador da Hudson Bay Co. . Na procura pelos sobreviventes da expedição Franklin, o explorador John Rae escalou os 200 m do monte pela primeira vez. Ovayok é a denominação inuit.
Minto Inlet, uma concha de mar na costa ocidental, a norte de Ulukhaktok
O rio Kuujjua é procurado também pela pesca do salmão do Ártico (arctic char), peixe de grande dimensão muito apreciado.
Um 'arctic char' sob o gelo
E quanto a História:
O primeiro momento de fama da região surgiu com a procura da rota para a Passsagem do Noroeste, que decorreu no século XIX/XX nas águas em torno da Ilha de Victoria. Várias expedições por aqui andaram, umas mais desastrosas que outras: John Franklin (1845), Robert McClure (1850), finalmente Roald Amundsen (1906) no Gjøa com total sucesso. Todos exploraram e mapearam a ilha.
A Passagem do Noroeste contorna obrigatoriamente a Ilha de Victoria.
Durante a procura de sobreviventes da trágica expedição de Franklin, o veleiro “HMS Enterprise” também passou o Inverno 1851-52 na ilha, em Winter Cove, uma enseada onde os marinheiros construiram um cairn (marco de pedras empilhadas) com mensagens escritas, para os marinheiros de Franklin saberem que andavam europeus à sua procura.
O 'cairn' de 1852 em Winter Cove.
Sol da meia noite...
... e, claro, auroras boreais:
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