domingo, 31 de janeiro de 2010

A estação polar Neumeyer III - dinheiro bem gasto

A nova base de investigação alemã na Antártida.
Coordenadas: 70º 68' S, 8º 26' W


Foi inaugurada a 20 de Fevereiro de 2009. É a primeira estação a integrar a investigação científica com instalações operacionais (cozinha, sanitários...) e alojamentos no mesmo edifício, numa plataforma levantada sobre pilares acima da superfície da neve. Conta ainda com uma garagem e armazém sob o gelo.

A plataforma alberga 100 contentores com dormitórios, cozinha, refeitório, hospital, laboratórios, salas de trabalho, sala de comunicações rádio, sanitários, sala de cinema, ginásio e sauna, estação de fornecimento de energia e instalação de fornecimento de água a partir da fusão da neve.

A principal novidade da estação é a capacidade de se adaptar às condições de acumulação neve e gelo através de um sistema hidráulico de elevação.


Nove a dez pessoas no máximo podem viver e trabalhar em permanência na Neumayer III durante o inverno antártico: um médico que é também o director, um meteorologista, um engenheiro em química da atmosfera, dois geofísicos, um electricista, um operador de rádio e engenheiro electrónico, um engenheiro mecânicoe um cozinheiro. A estadia é de 14 a 15 meses. No curto verão antártico, a base admite até 30 investigadores.

A Neumayer III foi transportada de barco para a Antártida em Janeiro de 2008 na forma de kit para montagem no local. Demorou cerca de 1 ano a ser montada...

Pesando 2 300 toneladas, a Neumayer III consiste numa superestructura montada sobre 16 pilares hydraulicos. É uma caso pioneiro de moderna tecnologia de construção, e é dirigida pelo Alfred Wegener Institute (AWI) para investigação polar e marinha.

O AWI

O Alfred Wegener Institute trabalha em o investigação científica no Ártico e Antártico. O instituto coordena as bases de investigação com uma frota polar de barcos como o quebra gelos “Polarstern” , e aviões como o Polar 5, desenvolvido pelo AWI para intervir na região antártica. Além de transporte de pessoas e cargas, inclui pequenos laboratórios.

O quebra gelos Polarstern:

Um laboratório flutuante de grande escala, 0 Polarstern é o mais importante dos recursos da AWI. Entre Novembro e Março frequenta o verão antártico, viajando depois para o Ártico onde passa o verão destas paragens. O seu vasto equipamento (9 laboratórios, aquários, salas refrigeradas) permite fazer investigação nas áreas da biologia, geologia, geofísica, glaciologia, química, oceanografia e meteorologia. Tem uma tripulação de 44 pessoas e aceita 50 cientistas. Aguenta - 50º C e vence gelo de 1,5 m de espessura.

Todo este impressionante equipamento de infraestruturas permite à Alemanha desempenhar um papel de vanguarda no estudo geofísico das regiões polares. Dinheiro bem gasto, como o Global Seed Vault da Noruega, de que já falei.

sábado, 30 de janeiro de 2010

266 dias de férias solares

O Sol está a sair lentamente de uma longa letargia como não se via desde 1913. Será esta a causa de um clima mais frio e perturbado?

Enquanto a Europa treme de frio, astrónomos, climatólogos e geofisicos calculam e recalculam: durante os últimos dois anos, o Sol esteve inquietantemente calmo. Os especialistas procuram saber porquê tanto tempo de inactividade e quais as consequências na Terra.

Estes períodos de inactividade costumam seguir um ciclo bem conhecido, em média de 11 em 11 anos. “O Sol parece em hibernação, depois as erupções regressam e projectam de novo grande quantidade de matéria no espaço », explica Jean-Loup Bertaux. Mas desta vez, durante 266 dias, nada – a nossa estrela apresentou mesmo zero manchas negras, ausência de erupções, coisa nunca vista desde o início do séc. XX ! Alguns cientistas alarmaram-se : e se já não voltasse mais à intensidade habitual ?

Os climatólogos constataram um abrandamento do aquecimento climático, em particular com o agravamento das condições invernais, como é o caso actualmente na Europa, há pouco na China, e no ano passado na América du Sul.

A ideia de que a Terra poderia entrar num curto período glaciar vai fazendo caminho. «O Sol teve um mínimo prolongado de actividade entre 1911 et 1913, explica Guillaume Aulanier, astrónomo do Lesia. Mais para trás no tempo, aconteceu no reinado de Louis XIV, durante quase sessenta anos, na conhecida "pequena idade do gelo" (LIA - Little Ice Age). Esteve um frio extremo na Europa e América do Norte».

Algumas manchas mais importantes e mais regulares começam a surgir agora à superfície do Sol, com “pequenas” erupções. Parece que o Sol esta a regressar de férias.


O Sol em forte actividade à esquerda, em Julho de 2002. À direita, uma imagem do passado 11 de Janeiro: apenas algumas manchas sombrias.

(NASA/ESA)

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Iliteracia, rapazes e raparigas, uma socióloga e o "Público"

Um bom exemplo de "estudo social" à moda nos nossos dias: em entrevista ao "Público" do dia 27, a socióloga da educação Alice Mendonça conclui que a escola beneficia as raparigas e prejudica os rapazes, com abundantes estatísticas e quantificações como é de bom tom.

Para a socióloga, os rapazes são mais contestatários, portam-se mal , ergo não aprendem; as raparigas são mais integradas e conformistas, fazem tudo como lhes é pedido, não admira que tenham mais sucesso.

Para além da idiotice pegada que é o estudo, a socióloga sai-se com esta pérola: "Continuam a nascer mais rapazes do que raparigas (em cada 100 nascimentos, 105 são do sexo masculino). Por causa disso o seu número é superior nos primeiros anos de escolaridade."

Coitada, suicidou o seu próprio estudo! Mas como este, há muitos , e às vezes bem pagos, e às vezes por todos nós...

PATEADA !

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Obras primas absolutas da música - IV: Mozart

Mozart nasceu "hoje", a 27 de Janeiro de 1756. Esta é também uma homenagem.

Hesitei muito em escolher a "obra prima absoluta" de Mozart - entre óperas, música litúrgica e concertos não faltam obras assombrosas. Acabei por optar por uma composição "pequena" mas onde a sua genialidade é evidente: a ária “Ch’io mi scordi di te…Non temer, amato bene”

É talvez a mais famosa ária de concerto de Mozart. Composta para a soprano Nancy Storace (1761 - 1817), uma estrela da época que ganhava fortunas, é uma ária operática "séria". O manuscrito tem data de 1786, e o texto pertenceria ao 2º acto do Idomeneo. Tem uma parte para piano obbligato, sem dúvida tocada pelo próprio Mozart na estreia em Fevereiro de 1787.

É particularmente invulgar e imaginativa a 2ª parte da ária, mais rápida, em que incursões vocais sem acompanhamento ("sempre il cuorsaria," "stella barbare," "stella spietate!") alternam com rápidos frases no piano. À voz, exige-se um canto dramático, capaz de exprimir as mudanças de estado e contrastes emotivos da personagem.

Duas gravações: a primeira, muito celebrada, de Bartoli:

Cecilia Bartoli (sop) Mitsuko Uchida(pf) Riccardo Muti/ Fil. Viena


A segunda, mais a meu gosto, de Edith Mathis :

Ch'io mi scordi di te?
Che a lui mi doni puoi consiglarmi?
E poi voler che in vita? Ah no!
Sarebbe Il viver mio
di morte assai peggior.
Venga la morte
intrepida l'attendo
Ma, ch'io possa struggermi ad altra face
ad altr'oggetto donar gl'affetti miei
come tentarlo?
Ah di dolor morrei!

Non temer amato bene
per te sempre sempre il cor sara.
Piu non reggo a tante pene
l'alma mia mancando va.
Tu sospiri? O duol funesto!
Pensa almen che istante e questo.
Non me posso, o dio, spiegar
Stelle barbare! Stelle spietate!
Perche mai tanto rigor?
Alme belle che vedete
le mie pene in tal momento
dite voi s'egual tormento
puo soffrir un fido cor?

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Histórias curtas IV : Italo Calvino - Isidora

O homem que cavalga longamente por terrenos selváticos sente o desejo de uma cidade. Finalmente chega a Isidora, cidade onde os palácios tem escadas em caracol incrustadas de caracóis marinhos, onde se fabricam à perfeição binóculos e violinos, onde quando um estrangeiro está incerto entre duas mulheres sempre encontra uma terceira, onde as brigas de galo degeneram em lutas sanguinolentas entre os apostadores.

Ele pensava em todas essas coisas quando desejava uma cidade. Isidora, portanto, é a cidade de seus sonhos: com uma diferença. A cidade sonhada o possui jovem; em Isidora, chega em idade avançada. Na praça, há o murinho dos velhos que vêem a juventude passar; o homem está sentado ao lado deles. Os desejos agora são recordações.

As Cidades Invisíveis - Italo Calvino

domingo, 24 de janeiro de 2010

Vaga de frio, coisa boa...


clicar na imagem

Graças a três satélites da NASA, podemos observar esta imagem composta que mostra a extensão de gelo e neve em Novembro passado. A neve cobre as regiões nórdicas e as maiores altitudes. As zonas brancas estão totalmente cobertas de neve, as azuis parcialmente.

No pico do Inverno, mais de 40% da terra está coberta de neve. Ainda bem: para além de ser uma vital fonte de água, a neve reflecte a luz do Sol, limitando o calor absorvido pela Terra.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Filósofos: que caminho ?



Philosophenweg, Dezembro de 2005

Pequena, medieval, preservada, histórica, universitária, é Heidelberg.

O Caminho dos Filósofos (ou Philosophenweg) de Heidelberg situa-se na encosta sobre a margem oposta do rio Neckar, a 200 m de altitude. Ao longo do percurso encontram-se plantas raras mais próprias de zonas quentes, graças a um microclima local: cerejeiras, ciprestes, bamboos, rododendros, yuccas, gingko... a vista sobre a cidade é soberba e inspiradora.

Há séculos atrás, Heidelberg era um refúgio para pensadores e estudiosos, em busca do romantismo daquele pedaço de vale ao longo do rio Neckar. A cidade universitária recebeu Goethe, Schiller, o poeta Eichendorff. Foi também um dos centros da Reforma, tendo acolhido Martinho Lutero em 1518. É a mais antiga universidade alemã, fundada em 1386 e nomeada em Outubro de 2007 como Universidade-Elite !

Nesta época tormentosa a todos os títulos, onde estão os Filósofos? Onde estais, Filósofos, para nos apontar o Caminho ? Andamos todos à deriva, sem modelos credíveis, sem ideais praticáveis, irmãos desavindos em crise permanente. Que é feito de vós, Filósofos, estais perdidos também no caminho ? Não basta ver as vistas, apreciar a paisagem - é preciso abrir caminho. Que falta fazeis!

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Bernarda Fink, fiabilidade germânica

É como nos carros: se queremos muito "estilo", raça, brilharete, vamos para a "machina" italiana; se preferimos solidez, fiabilidade, técnica irrepreensível, é o modelo alemão que mais nos satisfaz.

Confesso que estou cansado de brilharetes, fogo de artifício, pirotecnia e quejandos. Sabe bem desenjoar com esta voz absolutamente fantástica, não porque nos dê vertigens, mas porque nos dá uma sensação de infalível segurança, conforto e domínio técnico. É um mecanismo soberbo, bem oleado, à vontade em terrenos difíceis, permitindo ir longe sem sofrer sustos...Bernarda Fink é a mezzo perfeita para cantar Bach.

Dito isto, Bernarda Fink é argentina (Buenos Aires, 1955) e de pais eslovenos. Já gravou Bach com Gardiner, Harnoncourt, Herreweghe , Jacobs e agora Müllejans.


J.S.BACH Vergnügte Ruh! (BWV 170) , Bernarda Fink


Paira muitos céus acima de Scholl , na versão até aqui de referência. O que distingue Bernarda Fink de todas as vozes de contratenor em voga neste reportório? Querer sentir o texto sem medo de o exprimir. Não ser apenas uma voz musical etérea mas uma mulher de corpo e alma que incarna uma mensagem. Instinto poético e facilidade retórica. Conforto vocal e emocional.

Do livrinho do CD:


Em 1726 Bach entrou num período de inovação criativa em Leipzig; renunciando aos corais, dedicou-se ao diálogo entre voz e parte instrumental. Estas três árias são o culminar desse desenvolvimento.

A melhor gravação de cantatas de Bach desde há anos.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Início da temporada...

A minha agenda próxima para a Casa da Música:

  • R. Alessandrini, Orq. barroca Casa da Música - Händel ,Vivaldi, Muffat, Corelli
  • ONP, C. König - 2ª de Mahler, sop. Lisa Milne
  • Midori, ONP - Bach (BWV1042), Mozart, Schubert...
  • Carla Bley + Steve Swallow + orq. jazz matosinhos
  • M.J. Pires, P. Gomzyakov - sonatas pn & vlc, Beethoven
  • ONP / Takuo Yuasa, Bruckner - sinf. nº4,

Pensei em voltar a Glyndebourne ou a Lucerna, mas a programação para 2010, embora abundante, não é particularmente sedutora. Espero outra oportunidade... entretanto vou estudar idas a Zurique, a Itália e ao Via Stellae. E aceito sugestões tentadoras :)

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Credo que molhadice


Já não se aguenta, só de escafandro. Os joelhos doem, suamos dentro das lãs e dos impermeáveis, imersos num banho turco frio permanente. Isto desde Novembro!

Lembram-se do Blade Runner ? Em Los Angeles, 2019, a chuva cai sem parar como uma maldição, o dia é uma penumbra iluminada pelos guarda-chuvas com lâmpada néon...

E as últimas palavras do replicante, ferido de morte na mais memorável sequência do filme, "All those moments will be lost in time, like tears in the rain. Time to die".

That's the feeling...como 2019 chegou depressa!




quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Finzi, Eclogue

Gerald Raphael Finzi ( 1901 – 1956) é um compositor inglês contemporâneo de Vaugham Williams. Compôs algumas obras de grande escala - música coral (Ode For St Cecilia, 1947; "Intimations of Immortality" , 1950, para tenor, coros e orquestra) e concertos para violoncelo (1955) e clarinete - o mais conhecido, de 1949. Mas foi mais dedicado a ciclos de canções: Ten Children's Songs, Two Sonnets by JohnMilton, Till Earth Outwears, Seven Poems of Robert Bridges.

Eclogue Op.10, para piano e cordas, seria o andamento central de um concerto para piano nunca completado. Lembra um pouco o andamento central do concerto de Ravel.

Uma Écloga é um poema conversado entre dois pastores, onde domina o tom bucólico. A Écloga de Finzi é uma obra modesta, uma melodia para duas vozes no piano, sendo o acompanhamento das cordas bastante discreto. É construída grosso modo em arco, evoluindo em crescendo à volta do tema até atingir um clímax intenso e diminuindo depois, no regresso à simplicidade primitiva. O final , talvez ilustrando uma separação, muda para um discurso mais sombrio e carregado.

Gerald Finzi - Eclogue for Piano and Strings

Gravação que recomendo: Northern Sinfonia/Howard Griffiths/ Naxos

http://vodpod.com/watch/2589098-gerald-finzi-eclogue-for-piano-and-strings
Outros compositores "pouco falados":
John Marsh, aqui.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Histórias curtas III : Machado de Assis

O EMPLASTO

Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara, pendurou-se-me uma idéia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volatim, que é possível crer. Eu deixei-me estar a contemplá-la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os braços e as pernas, até tomar a forma de um X: decifra-me ou devoro-te.

Essa idéia era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplasto anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade. Na petição de privilégio que então redigi, chamei a atenção do governo para esse resultado, verdadeiramente cristão. Todavia, não neguei aos amigos as vantagens pecuniárias que deviam resultar da distribuição de um produto de tamanhos e tão profundos efeitos. Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que negá-lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas. Talvez os modestos me argúam esse defeito; fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer os hábeis. Assim a minha idéia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro, de outro lado, sede de nomeada. Digamos: -- amor da glória.

Um tio meu, cônego de prebenda inteira, costumava dizer que o amor da glória temporal era a perdição das almas, que só devem cobiçar a glória eterna. Ao que retorquia outro tio, oficial de um dos antigos terços de infantaria, que o amor da glória era a cousa mais verdadeiramente humana que há no homem, e, conseguintemente, a sua mais genuína feição.

Decida o leitor entre o militar e o cônego; eu volto ao emplasto.


(de Memórias Póstumas de Brás Cubas)

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

As muitas neves do Ártico








Nas linguagens nativas do ártico há dezenas de diferentes palavras para a neve e o gelo:

kaniq, qirihuq, qirititat, nilak, nilak, nilaktaqtuq, hiku, hiquaq, hikuaqtuaq, hikurhuit, hikuqihuq, hikuliaq, maniraq, hikup hinaa, qainnguq, manillat, kassut, iluliaq, ilulissirhuq, auktuq, quihaq, hirmiijaut...

Gelo de água doce, mar gelado, gelo fino, gelo no interior da tenda, gelo em fusão, gelo flutuante, agulhas de gelo, dunas de gelo, esquina de gelo, colina de gelo, rio de gelo, geada, neve fofa…

Quando um caçador inuit vai em corrida no trenó de cães, o tipo de gelo faz a diferença entre a vida e a morte - deslizar ou afundar. O gelo é a única estrada, a única bebida, e até o único material para construir um abrigo. Não admira que exija precisão de linguagem.

Pensei nisto e tentei inverter a situação. O que é que os Inuit não têm e nós temos em abundância e variedade? Ora bem: árvores. Se um deles cá viesse, choupo, pinheiro, carvalho, oliveira, acácia, salgueiro, arbusto - tudo, para o nosso esquimó, não passaria de "árvore"...

Já agora, uma palavra nova: sastrugi.


Denominação de estrias ou elevações no gelo paralelas à direcção do vento. Observadas também em...Marte !

domingo, 10 de janeiro de 2010

nichts niente nihil nada

Placa em rua de Saint John, Brunswick, Canada

Deve ter sido cópia feita por um emigrante irlandês de uma outra, idêntica, na remota aldeia de Recess, Connemara, Irlanda.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Rapariga levantando o véu, de Murillo

Foi agora descoberto um novo quadro de Murillo, que estava na posse de um coleccionador suíço. Mede 55 x 42 cm e retrata uma jovem debruçada à janela, levantando o véu que lhe cobre a cabeça e as costas. É portanto mais uma das poucas obras seculares de Murillo, de quem se conheciam alguns retratos da vida real de rapazes nas ruas de Sevilha.

O que me tocou na reprodução a que tive acesso na net foi a modelação primorosa do rosto e a intensidade da expresão daquela jovem.

Pintado com certeza entre 1661 e 1670, deverá ter sido uma das últimas obras de Murillo. Nesta fase, e neste retrato, a influência de Velasquez era já bem visível.

É sempre comovente assistir ao "nascer" de um novo clássico, nao é ?

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Ano Mahler (I) : obra prima absoluta (III)

Se há compositor que não precise de ano para ser celebrado é Mahler. Tenho sempre música dele "à mão", está em audição permanente.

De Mahler apetece-me dizer que fez a única síntese genial de música erudita com músicas populares, folclore, etc., e com músicas não europeias - integrou também influências orientais, outras experiências tonais, dissonantes... Ébrio de toda a música do mundo, organizou sinfonias monumentais e quase-operáticas ou mesmo litúrgicas onde levou os contrastes dinâmicos e dramáticos ao paroxismo. Uma música de excessos, de infinitos. Contrapontos inacreditáveis, ritmos ínesperados, instrumentos exóticos, harmonias improváveis.

A 2ª sinfonia é a que vai mais longe, a arquitectura mais bem conseguida, a fusão perfeita da sinfonia com a obra religiosa. Nunca se ouve duas vezes da mesma maneira, nunca se toca duas vezes da mesma maneira, nunca é demais repeti-la. É a 2ª de Mahler a que mais me perturba e onde encontro o êxtase da contemplação musical.

A 5ª é a mais bela.

A 6ª é a mais louca.

A 4ª sinfonia é a que vou escolher como "obra prima absoluta" para não ser uma escolha demasiado óbvia.

Mahler feliz

Na 4ª sinfonia, a música flui com vitalidade e serena criatividade, com um grão de folia que não extravasa, e mais classicismo que nas suas vizinhas. Por alturas da sua composição, Mahler já é o incontestado director da Orquestra de Viena. E é vienense, herdeiro de Mozart e de Haydn, o lirismo pastoral e o contido abandono com que compõe a 4ª, programando uma sinopse dos seus andamentos:

1. O Mundo como Eterno Presente
2. A Vida Terrena
3. Caritas
4. Os Sinos da Manhã
5. O Mundo sem Gravidade
6. A Vida Celestial

Começou a trabalhar em Julho de 1899, e logo fez múltiplas modificações ao plano. Retirado numa estância balnear, Mahler teve azar com o tempo - frio e chuvoso - e com a casa que arrendara, próxima do coreto da banda local ! Pobre Mahler, o que ele sofreu ! Desistiu, dedicou-se à leitura, o que resultou em pleno: as ideias musicais começaram a surgir a jorros. Em poucos dias a obra tomou forma.

Depois de outra temporada esgotante à frente da Orquestra de Viena, no ano seguinte, 1900, escolheu outro local para férias, comprou uma casa sossegada, e construiu um pequeno estúdio cercado e isolado pelo arvoredo. Esgotado, deprimido e ultra-sensível, até o canto dos pássaros o incomodava, e não conseguiu a princípio retomar a obra. Quando serenou, foi com espanto que constatou que estava mais avançada do que pensara: todo o tempo tinha operado com ela quase inconscientemente, e foi com naturalidade e espontaneidade que lhe surgiram ideias conclusivas: terminou a 4ª sinfonia a 6 de Agosto. Feliz, expansivo, entusiasmado, contava aos amigos detalhes da sinfonia, como a compusera, a complexidade da sua polifonia e do entrosamento das secções da orquestra.

Descreveu o Adagio como "uma melodia divinamente alegre e profundamente triste", traduzindo "uma paz solene e abençoada". Disse que ao compor esse andamento se inspirara no rosto da mãe quando sorria entre as lágrimas. E o último andamento é a resposta da inocência da criança ao Homem: eis a vida celestial.

Este andamento, incluindo a canção Das himmlische Leben, deve ter dado mais trabalho a Mahler que todo o resto da sinfonia, que todas as outras sinfonias. Sob a aparente simplicidade há uma imensa riqueza de invenção, uma densidade polifónica sofisticada e uma complexa técnica sem precedente nas três primeiras sinfonias. Uma verdadeira obra de vanguarda, que como tal obteve reacções muito adversas do público da época...

Gustav Mahler - Sinfonia No. 4 - 3º andamento (início)
Leonard Bernstein , Filarmónica de Viena



4º Andamento
Orquestra do Concertgebouw, B. Haitink,

Christinne Schafer



Devo dizer que actualmente a minha gravação de referência (ainda) é a de Claudio Abbado, com a Filarmónica de Berlim e Renée Fleming.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Pergolesi, Carolyn Sampson

Giovanni Batista Pergolesi nasceu próximo de Ancona (Itália), em 4 de Janeiro de 1710. Estudou em Nápoles, no Conservatório dei Poveri. Revelou-se como violinista nas serenatas que os seus alunos repetiam pela cidade.

Mas o êxito de Pergolesi só começou após a sua morte. As suas óperas foram representadas por toda a Europa, tendo La serva padrona obtido um grande sucesso durante longos anos.

Também o Stabat Mater, apesar da ingenuidade do seu lirismo, conheceu grande popularidade.

Sem ser um génio de criatividade ou inovação, Pergolesi é um daqueles compositores talentosos que fazem a cultura musical de uma época. A sua obra não é marcante mas é merecedora da nossa audição atenta.

Excerto do Stabat Mater:
The King's Consort, Carolyn Sampson (soprano).

Nota: está disponível no Youtube a integral do Stabat Mater pelo King's consort.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Snegurochka

Depois do post sobre Chyskhaan, outra tradição russa desta estação do ano.

Snegurochka, a Rapariga da Neve, é uma personagem do folclore russo que nunca falta nas celebrações de ano novo. Tem origem em crenças pagãs eslavas.

Segundo a lenda, Ded Moroz, o Avô Gelo, e a também idosa Rainha das Neves, fizeram Snegurochka moldando a neve. Usaram duas safiras de azul profundo para os olhos, uma fita vermelha para os lábios, e deram vida a uma belíssima jovem. Vestiram-na com um manto branco, e na cabeça usa uma coroa de pérolas e pratas.

Mas quando o Sol volta e aquece a terra, Snegurochka entristece. Um dia foi com outras meninas apanhar flores nos bosques. Quando escureceu, elas acenderam uma fogueira e começaram a saltar sobre as chamas. Snegurochka também saltava, mas começou a derreter e transformou-se numa nuvem branca.

Snegurochka passou a ser mais conhecida no séc. XIX depois de o escritor russo Aleksandr Ostrovsky ter escrito a peça "Conto de Fadas da Primavera", baseada na lenda (*). Retrata a bela jovem como filha do pai Gelo e da Mãe Primavera. É imortal, mora na Floresta de Inverno do pai, mas sacrifica a imoratalidade à capacidade de sentir o amor como os humanos. Como sofre com a solidão, a mãe dá-lhe uma coroa de flores, que, transmitindo tristeza e prazer, vai aquecer o frio coração da filha. Contudo, mal esta se apaixona, deixa a floresta e derrete-se pela manhã quando o sol a toca e a transforma numa nuvem.

A imagem moderna de Snegurochka surge nas celebrações de ano novo em festas e representaçõoes teatrais para as crianças. As meninas vestem-se de Snegurochka. É a neta, companheira e ajudante de Ded Moroz na distribuição de prendas às crianças.

Nikolay Rimsky-Korsakov escreveu uma ópera baseada na peça de Ostrovsky :

Rimsky-Korsakov, "The Snow Maiden" - Snegurochka -Teatro "Ópera Nova", Moscovo

(*) Também Tchaikovsky escreveu música incidental para a peça Snegurochka de Ostrovsky.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Ver e Rever: O Novo Mundo de Terrence Malik


Revi agora , passados cinco anos , esta obra prima de Malik: voltei a sofrer o mesmo deslumbramento. O filme nada envelheceu, pelo contrário, continua uma fascinante revelação, como se fôssemos de visita à Atlântida; no final, esfregam-se os olhos, que se recusam a aceitar o fim da viagem.

Ninguém diria que a história de Pocahontas daria um filme assim sublime, mas Terrence Malik soube perscrutar a beleza subjacente e transformar a história numa saga épica, reconstruindo com autenticidade a fundação da primeira colónia inglesa na América do Norte em 1607, Jamestown, a par da vida tribal do índios Algonquian, intimamente relacionada com a natureza, inocente e violenta ao mesmo tempo. O modo como retrata o "choque de civilização" entre ingleses e índios é magistral, e culmina com a chegada de Pocahontas a Plymouth e à corte de Londres.

Uma direcção vagarosa e meditativa e um cuidado tratamento estético da imagem caracterizam a cinematografia de Terrence Malik. A música de James Horner (Titanic) e de Mozart é usada como poucas vezes no cinema , com uma precisão e intensidade calculadas, em contraponto com a acção.

Finalmente, outra perturbante revelação foi a actriz alemã de ascendência peruana e alasquiana Q'Orianka Kilcher ("Águia Dourada" !). Incarna Pocahontas de tal modo que não damos conta de assistir à representação de uma actriz .

(Esta é a nova versão, mais longa, que integra alguns dos cortes que Malik fora obrigado a aceitar devido à duração excessiva da sua montagem inicial)

domingo, 3 de janeiro de 2010

De boas intenções...

Fica bem declarar intenções para o novo ano. Gostava de ser capaz de manter com regularidade algumas rubricas iniciadas neste blog:

Ler e Reler, para livros
Ver e Rever, para filmes
Em audição, para CDs
Obras primas absolutas da musica clássica

Vozes do séc. XXI
Árvores e Poesia
Mar e Poesia
Compositores pouco falados
Histórias curtas
Notícias do Ártico
Contos e lendas do Norte

Talvez esteja a ser ambicioso, mas vou tentar que as páginas do Livro de Areia se vão folheando à volta destes temas. Não era mal pensado se conseguisse ser mais organizado nos meus posts. Isto, claro, sem prejuízo de assuntos novos ou que surjam de improviso.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

"Receita de ano novo" (*)

de Carlos Drummond de Andrade :


Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

(*) Votos de bom ano ao De Rerum Natura, Gratias Vobis Ago.